A “caixa de pandora” abriu-se no penúltimo dia do ano com a publicação do Decreto-Lei n.º 139-C/2023 que “…define o regime de atribuição do suplemento decorrente do regime especial de prestação de trabalho das carreiras especiais e carreiras subsistentes da Polícia Judiciária (PJ) e dos ónus inerentes ao cumprimento da sua missão, em especial o risco, a insalubridade e a penosidade que lhes estão associados… …«suplemento de missão de polícia judiciária»…”

Até ao dia em que escrevo, o director nacional da PSP e o comandante-geral da GNR manifestaram expressamente ou por interposta pessoa, publicamente, o total apoio ao alargamento do suplemento de missão de polícia judiciária a todos os seus próprios subordinados, e o director nacional da PJ foi o primeiro a manifestar a concordância com isso mesmo. O Secretário-Geral do Partido Socialista – cujo governo fez esta legislação – também veio dar a entender o mesmo e o Presidente do Partido Chega garantiu a pés juntos que se fosse ele a mandar assim faria. Houve outras reações partidárias, todas no mesmo sentido. O Presidente da República que promulgou a legislação, com avisos para o futuro, há dias emitiu nova informação pública a reiterar isso mesmo.

E de onde vem toda esta inusitada unanimidade nacional?

Vem de protestos de elementos da PSP e da GNR que estão a diminuir a sua actividade normal, num crescendo em todo o país, uma onda que ninguém sabe hoje quando vai terminar e as suas consequências. Nos debates teóricos sobre o nosso sistema de segurança interna, uma das principais razões para a GNR ser uma força militar, diziam muitos, seria substituir a PSP no dia em que esta, sindicalizada, não garantisse a ordem pública devido a uma qualquer “luta sócio-profissional”. Pois aí estão as duas forças juntas e, assinale-se, até com os seus dirigentes máximos incluídos, objectivamente a manifestarem-se publicamente contra a opção do governo a quem devem obediência.

E agora? Se todos, polícias e políticos, dizem sem excepção que o suplemento de missão é justo…certamente será estendido aos efectivos da PSP e GNR. Note-se que na PJ não são apenas os “operacionais” que o recebem, também as carreiras de apoio. A PJ terá cerca de 2.500 elementos, a PSP uns 20.000 e a GNR cerca de 24.000.

Se assim for é a primeira vez desde a normalização democrática em 25 de Novembro de 1975 que as Forças de Segurança conseguem – por inabilidade do governo, diga-se – vergar o poder político às suas exigências salariais. Aquilo que durante anos se temeu, ver os militares usarem a força armada em proveito das suas reivindicações corporativas, afinal são as polícias a fazer e sem disparar um tiro! Bastou-lhe parar parcialmente a sua actividade. Os aumentos salariais serão conseguidos pela força desta “negociação”.

E os militares das Forças Armadas que são uns 23.000, não cumprem missões com “risco”, “insalubridade” e “penosidade”? Não seria assim mais lógico aumentar os vencimentos em vez de estar a inventar mais um “suplemento” de caracterização no mínimo dúbia?

Note-se que a política de “suplementos” é um “puzzle” difícil de descortinar e dá para escrever um livro. Já os há vários nas polícias, GNR e serviços de informações, como também nas Forças Armadas. Agora entre os militares os suplementos que envolvem o que se considera mesmo risco têm uma característica: só são pagos a quem realmente o corre e não a todos os que pertencem à instituição. Ou seja, identificados os que executam actividades concretas com risco – pilotos e outro pessoal navegante em aeronaves, paraquedistas, submarinistas, mergulhadores, e talvez mais alguma especialidade que não recordo – quem a executa recebe um “suplemento”. E há outra grande diferença, essa actividade é contabilizada, registada, validada e só depois paga. Assim um piloto tem de cumprir um determinado número de horas de voo por semestre, um paraquedista um determinado número de saltos em paraquedas, um submarinista um determinado número de horas de imersão, etc.

Atribuir um suplemento que inclui uma noção algo difusa de risco e transversalmente a elementos de uma instituição com trabalhos muito diferenciados acaba por ser sempre uma injustiça relativa e desmotivadora para os que realmente arriscam.

Fique claro, acho muito bem que aumentem as várias polícias, militares da GNR e das Forças Armadas. Os seus vencimentos são claramente desadequados para as tarefas que cumprem e a sua enorme responsabilidade na sociedade democrática em que vivemos.

Aliás as dificuldades crescentes de recrutamento nas Forças de Segurança e nas Forças Armadas a isto não serão estranhas. Se todas as Forças de Segurança forem abrangidas e as Forças Armadas não, será fácil adivinhar o impacto disso no recrutamento e na motivação dos que vestem o uniforme militar.

Haja é coragem no governo para dizer isto ao país: não há bem maior que aquele que estes servidores públicos nos garantem, a segurança! E sim, sejam pagos por isso.

Miguel Silva Machado 21JAN2023

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