Edmond Jabés, em O Livro das Questõesinterroga-se sobre qual o nome a dar ao silêncio. Para o poeta, o silêncio é uma ferida, um verbo-ferida, cujo mapa, de “tanto que o mundo se mistura connosco”, pertence à ordem do ausente, de um esquecimento que é a queda das coisas e dos seres. Tal queda não é meramente aparente ou literária – é percetível, é um evento. O documentário de Hugo de Almeida, “Carne: A Pegada Insustentável” (2024)pode ser visto como um desses eventos, mas eu preferiria assinalá-lo aqui como um “devir”, para usarmos um termo deleuziano. Produzido pelo eurodeputado Francisco Guerreiro, tal documentário constitui-se num “devir animal”, um objeto para, de forma desterritorializada, nos perguntarmos sobre a ferida aberta que é a nossa vida, humana e não humana. Um tal devir surgiu em mim na figura de um furor, logo após a primeira visualização do documentário no Cinema Batalha, no dia oito de março, no Porto. E da segunda vez, vinte dias depois, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Portoexperimentei o mesmo furor, mas agora sob a forma de uma aliança e simbiose, ambas conectadas com a afetação que o documentário instala em nós. A afetação comporta uma forte dualidade – o afeto não corresponde apenas a um sentimento pessoal, ou a uma mera característica emocional; ser-se afetado significa experienciar uma perturbação, uma potência além do eu, uma multiplicidade. Como num bando, ou em matilha, tal furor produziu em mim a vontade de um agenciamento para nele operar o meu próprio devir animal. Hugo de Almeida sabe desmontar a narrativa naturalizada que associa o consumo de carne a um ideal de humanidade bondosa, benigna e afetuosa na relação que preserva com os animais não humanos, ainda que historicamente sujeitos a dispositivos de abuso e violência perpetuados pela ação humana, e dos quais derivam os atuais sistemas de exploração animal e de produção intensiva dos seus modos de vida e sofrimento. É neste preciso ponto que se torna urgente pararmos a máquina antropológica, suspender, nem que por uma coexistência de durações, os seus mecanismos de legitimação e opressão. A produção de agenciamentos, sejam políticos, éticos, de jurisprudência, ou sejam ainda no âmbito do pensamento psicológico e da pedagogia das nossas condutas, é um gesto vital perante as forças populistas que temos a enfrentar. Aquele meu furor, da segunda vez que me confrontei com o filme de Hugo de Almeida, ressurgiu na forma de uma perplexidade perante a defesa, num dos comentários aludidos durante o debate moderado por mim e que aí teve lugar em cooperação com a Associação Vegetariana Portuguesade que as questões alimentares não deveriam constituir objeto de política. Desde logo, veio-me à cabeça a expressão de Derrida, eis que ele encorajae a ideia segundo a qual a política é um lugar (pólis). As tradições imperialistas e nacionalistas que, pelo menos desde o séc. XVIII, deram corpo aos Estados-Nação europeus (e doravante aos totalitarismos do séc. XX), politizaram a máquina humanista através de um jogo de articulações e oposições, como tarefa da própria ideia do homem humano, separado de uma animalidade considerada homogénea e vertiginosa. Kant, aliás, nas suas reflexões sobre educação, considera primordial que uma das finalidades da educação formal moderna seja a de separar a criança da sua animalidade. Mas há uma narrativa anterior, fundada no ideal da busca da verdade pela luz natural, e cujas coordenadas podemos encontrá-las em Descartes. Não só o consequentemente, eu sou surge separado do corpo, como toda a ideia de Eu penso é reforçada pela promessa da razão humana, ao serviço de uma ciência experimental e em nome da civilização da técnica. A maior parte das narrativas modernas europeias, desde o Iluminismo ocidental, considera que a humanidade será sempre capaz de atingir os objetivos aos quais se propõe alcançar. No interior desta vontade reside a fé histórica na ação humana e nas coisas boas que ela é capaz de produzir – poesia, religião, arte, filosofia. Mas acontece que há muito que tais coisas foram ultrapassadas pelos desígnios da fé. Walter Benjamin, quando escreve sobre o desenho de Paul Klee, Novo anjo (1920), é eficaz na descrição de uma história humana cujo anjo se ergue sobre as ruínas, de costas voltadas e de asas desfraldadas, diante da tempestade que é o progresso. A ideologia humanizadora que sustenta a máquina antropológica constitui-se, portanto, numa ideologia profundamente territorializada, solidária com uma ideia de pós-história, cuja ferida aberta foi tornada em espetáculo, economia utilitária, usura. Todavia, historicamente, esta ideia de humano corresponde a um campo de tensões dialéticas – agenciadas numa “rizosfera”, diria Deleuze – retalhado por cesuras e negatividades cujas dinâmicas separam a animalidade “atropófora” e a humanidade que nesta se incarna. Tudo aquilo que é da ordem do indeterminado – a vida – passa deste modo a ser articulado e dividido por uma série de oposições e cesuras. Ora, é justamente porque vivemos dentro da catástrofe que nos devemos perguntar: onde se encontra a animalidade do humano na pós-história? Não que eu idealize uma suposta humanidade animal resgatada pelo património biológico das nações e sua progressiva generalização e governo. As relações entre animais humanos e não humanos foram sempre pensadas enquanto conjunções de um corpo com um logotiposde um elemento natural – reduzido ao animal – e de outro sobrenatural – elevado à categoria de social ou de divino. Mas, em O AbertoAgamben é certeiro: o humano “resulta da desconexão destes dois elementos”. Interrogarmo-nos e refletirmos sobre o que no humano foi separado do não humano é hoje muito mais urgente do que adotar posições sobre os “supostos valores e direitos humanos”. Porque a “limitrofia”, nas palavras de Derrida, através da qual animais humanos e não humanos foram separados e estruturados, joga com todo um evolucionismo historica e ideologicamente enraizado na nossa cultura. Tal conceção, apoiada ainda pela perspetiva estruturalista das representações animais – e de que o arquétipo junguiano é um essencialismo entre outras variações antropomórficas – ativa em nós, de forma sucessiva, a máquina do humanismo com todos os seus modelos e razões de série. Uma tal máquina opera por diversos meios: seja por semelhança hierarquizada, seja por espelho ou por imitação, seja ainda por ordenação, tornando impossível a ideia de uma “evolução-produção”, nos termos de Deleuze. Ora, se se admite o fim da história, ter-se-á de admitir, porém, que continuamos a falar do humano e sempre do seu desaparecimento enquanto tal. O aniquilamento do humano suporá, portanto, e necessariamente, o desaparecimento da linguagem humana, mas só e apenas enquanto rasto. Uma visão que traga à superfície a iminência do fim é uma visão que continua a carregar a antropogénese das origens humanas, nem que seja enquanto paródia. Hugo de Almeida não faz esse exercício, ou seja, o furor que em mim se instalou não proveio da imagem de uma hecatombe que o documentário eventualmente poderia espoletar. A realização do filme corresponde a uma experiência total, mas de natureza sensorial, através da qual a reflexão sobre o superior interesse do animal contrasta com a matriz objetificante, desindividualizadora e dicotómica na qual assenta, não só a perceção, mas principalmente a práxis que pomos a uso na relação com os animais não humanos. Nessa medida, o documentário politiza a problemática da alimentação, mas fá-lo através de um discurso testemunhal e aberto à experiência da escuta, sobretudo da contra-narrativa, das imagéticas e das representações consumadas, bem como dos discursos oriundos de uma linguagem hegemónica. O que entra em jogo, portanto, é o questionamento da nossa própria espécie e o princípio ético que, inevitavelmente, a afeta.

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