Portugal tinha uma “enganadora reputação” de vida barata, nos anos de 1950, comprovou a escritora norte-americana Mary McCarthy, durante a sua viagem pelo país, relatada no artigo “Carta de Portugal”, publicado pela revista O Nova-iorquinoem 1955.

O suborno e a corrupção dos altos-funcionários, que a burocracia e o corporativismo da ditadura facilitavam, o alheamento da realidade das classes mais altas, o “novo-riquismo” vindo dos negócios do tempo da II Guerra Mundial, e a recente aposta no “comércio turístico” não escaparam à escritora e jornalista, que atravessou o país, entre Janeiro e Abril de 1954.

Um dos primeiros gestos de McCarthy, ao fim dos primeiros dias em Portugal, foi escrever à sua amiga Hannah Arendt, a autora de “As origens do totalitarismo”, que vivera em Lisboa em 1941, na viagem de fuga ao nazismo, rumo a Nova Iorque. Essa carta foi inserida no volume de correspondência entre ambas, “Between Friends”, publicado em 1995.

A escritora resumiu a Arendt muito do que pormenorizou no artigo publicado pela Nova iorquinono número de 28 de Janeiro a 05 de Fevereiro de 1955. A carta a Arendt fala de um inesperado inverno de neve em Lisboa, e da “estranha mistura de prosperidade e pobreza”.

O eixo Avenida-Baixa-Chiado, na capital, lembrava a McCarthy “uma pequena América”, em contraste com o resto do país, por causa dos automóveis, dos anúncios de néon, dos electrodomésticos e dos produtos importados expostos em montras.

“Portugal tem uma enganadora reputação de ser um país onde a vida é barata”, lê-se no artigo. “Do nosso ponto de vista”, a comida, as roupas, os transportes “são baratos, mas se se quiser comprar alguma coisa importada (uma panela de pressão, um fogão eléctrico, um rádio), ou algo feito numa fábrica moderna, é muito caro, em comparação com os preços em qualquer outro país.”

“Quem compra as coisas das lojas do Chiado?”, perguntava Mary McCarthy, sem encontrar resposta. “Os estrangeiros”, diziam portugueses; “os novos-ricos”, respondiam quase todos. A escritora encontrou por fim um alto funcionário que oferecera uma panela de pressão à mulher, para a criada usar e “ver como funcionava”.

As dificuldades e problemas não preocupavam “os grandes funcionários, os portugueses ricos nem os estrangeiros” que viviam “em vilas em Sintra, Estoril ou na Praia da Rocha”, escreveu McCarthy.

A “carapaça” dos ricos

O abismo que separava as classes era “tão grande” que parecia “ter formado uma carapaça sobre os ricos, tornando-os apáticos e indiferentes”, assegurava a escritora. “Não é que eles sejam maus. Pura e simplesmente não pensam”, explicou-lhe uma portuguesa dada a obras sociais. “Não foram habituados a pensar” [nos outros]”.

Mary McCarthy falou do novo-riquismo, que enchia as pastelarias do Chiado, resultante dos negócios do volfrâmio e das vagas de refugiados que passaram pelo país, durante a II Guerra Mundial, assim como dos novos “burocratas joviais” que estavam “a “vender” Portugal para o comércio turístico e a lutar […] por dotações para a construção de hotéis.”




Reg BurkettGettyImages

“Os oposicionistas dizem que [muito do dinheiro] foi parar aos bolsos dos burocratas do Governo, e que esses burocratas” continuavam “a lucrar através do suborno”. O condicionamento económico, que limitava sectores e iniciativa, estipulava preços e margens de lucro, lembrando planos soviéticos, era mais uma fonte de burocracia e corrupção.

A viagem a Portugal de Mary McCarthy deu ainda origem a um segundo texto, “Mister Rodriguez of Lisbon”, publicado em Agosto de 1955 na Revista Harperque viria a ser reunido ao da Nova iorquino no volume de ensaios “On the contrary”, em 1961.

Esse artigo sobre a política de habitação do Estado Novo, associada a planos de expansão urbana, relata uma visita, conduzida pelo alto funcionário “senhor Rodrigues”, a bairros de renda económica de Lisboa. Não escapou a Mary McCarthy a ironia da complexa teia que regulava o acesso à habitação, reservada sobretudo a funcionários, em tipologias diferenciadas, conforme rendimentos, lugar na hierarquia, número e sexo dos filhos.

“Mister Rodriguez” mostrou a sua própria casa à escritora, uma das destinadas aos funcionários de topo: “Mobilada segundo o gosto máximo da burguesia portuguesa, tinha um enorme candelabro de cristal numa pequena sala de estar”, cheia de móveis trabalhados e tapetes de gosto oriental.

Realidade comparável “às piores páginas de Victor Hugo”

A obra de Mary McCarthy entrou em Portugal pela editora Ulisseia, com a publicação de “O grupo”, em 1963, romance retomado pela D. Quixote em 2010. Seguiram-se “A gente com quem ela anda” (Estúdios Cor, 1967), “Vietname” (Bertrand, 1967) e “As alamedas da academia” (Portugália, 1970).

“Carta de Portugal” foi publicada em 1990 pela Fundação de Serralves, no catálogo da exposição dedicada ao trabalho do fotógrafo norte-americano Neal Slavin feito no país, em 1968, que ainda testemunhou a realidade encontrada por McCarthy 14 anos antes. O contraste entre a pobreza de muitos e a riqueza de poucos domina a “Carta de Portugal” da escritora e jornalista norte-americana Mary McCarthyresultado da sua visita ao país, publicada na revista O novo Yorkerem 1955.

Portugal, onde o trabalho era “a mercadoria mais barata”, a miséria comparável “às piores páginas de Victor Hugo”, com os ricos “cada vez mais ricos” e “os pobres cada vez mais pobres”, e onde “não ver” fazia “parte do idílio” da ditadura, era o país de Salazar, “um homem que só fez o melhor pelo seu povo”, como a escritora ouviu dizer à chegada a Lisboa, onde entrou pelo Tejo, no início de Janeiro de 1954.

A autora, que durante anos escreveu para publicações como a Revista Harper, A Nova República está em Revisão Partidáriarevista que lhe confiou a cobertura da guerra do Vietname, esteve em Portugal até meados de Abril desse ano, viajando de norte a sul, de Lisboa, ao Algarve e ao Porto.

O choque entre realidade e propaganda ficou desde logo marcado nos primeiros parágrafos do longo texto que foi publicado três anos depois do aparecimento do livro “Férias com Salazar”, da francesa Christine Garnier, projecto do antigo Secretariado Nacional de Propaganda (SNP). De resto, o texto de Mary McCarthy é o oposto do retrato “amaciado e humanizado” do ditador, feito pela colunista do Le Fígarocomo o definiu o historiador Fernando Rosas, no prefácio a uma edição recente do livro (Parceria A.M. Pereira, 2002). McCarthy é descritiva, objectiva na reportagem e também na ficção. A revista A nação não hesitou em falar da “implacável honestidade” da obra de Mary McCarthy, e o escritor Norman Mailler designou-a “a primeira-dama das letras” americanas.

A “miséria cinzenta” do Porto

O retrato que Mary McCarthy fez de Portugal prende-se à realidade das ruas, das pessoas com quem falou, à miséria que via para lá das lojas do Chiado, da Baixa e da Avenida da Liberdade, em Lisboa, aos pedintes, às barracas em redor da capital, às casas sem condições nos bairros antigos, aos “fatos terrivelmente coçados e remendados” que toda a gente parecia usar, aos estendais cheios de roupa “de espantalho”, e ao modo como a realidade divergia do discurso oficial.

Mary McCarthy confrontou aquele que definiu como “homem da propaganda”, e teve como resposta: “Onde viu pessoas pobres?”. A escritora encontrou-as por todo o lado, “na imagem viva da pobreza” de Alfama, no horror da “miséria cinzenta” do Porto, nas crianças seminuas e nas mulheres embrulhadas em trapos, num inverno rigoroso. “Essas mulheres são muito poupadas”, respondeu-lhe “o homem da propaganda”. E as pessoas de Alfama eram “de uma raça especial, […] nunca viveriam respeitavelmente se lhes dessem essa oportunidade.”

Mary McCarthy não identificou “o homem da propaganda”, mas o texto aponta para os responsáveis máximos do Secretariado Nacional de Informação (SNI), sucessor do SNP. À data, o SNI era dirigido por José Manuel da Costa, ex-chefe de gabinete de Salazar, e tinha em Ramiro Valadão, futuro presidente da futura RTP, o chefe dos serviços de informação.

A escritora considerava que o regime era “semi-totalitário”, que havia censura (viu “Os sete pecados mortais” no cinema reduzidos a quatro), que havia polícia política, sabia que a greve era proibida, que os direitos cívicos eram mínimos, que as mulheres ficavam em casa e as eleições tinham “um sabor soviético”. Na Nova iorquinoidentificou apenas opositores fora de perigo imediato, como o professor universitário Francisco Cunha Leal, antigo ministro da I República, que se fixara em Espanha, e o sociólogo António Sérgio, “um velho encantador, com uma imagem de Kant no seu escritório”, para quem “era um aborrecimento que o Governo já não se preocupasse em prendê-lo, limitando-se a perseguir os seus associados das maneiras mais mesquinhas.”

“Em Portugal, o nome de Salazar” parecia pairar sobre todas as coisas, escreveu Mary McCarthy na conclusão do artigo da New Yorker: “Tal como o de Deus, é pronunciado de um modo especial […]como se a voz envergasse um fato de domingo. Existem dúzias de histórias sobre ele, ilustrando os seus hábitos frugais, a sua relutância em partilhar o poder. Todas parecem falsas como as que se contavam sobre Estaline.”

Fuente