O Marco Civil da Internet, nome pelo qual é conhecida a Lei 12.965/2014, estabelece princípios, garantias e deveres para o uso da internet no Brasil. A lei foi sancionada em 23 de abril de 2014 e determina diretrizes para a proteção dos direitos dos usuários, a garantia da liberdade de expressão e a definição de responsabilidades dos vários agentes que atuam na rede. Nesta terça (23), o documento celebra 10 anos de validade e o Canaltech preparou um especial sobre o que ele significa e como ainda pode melhorar.



Foto: Elementos/rawf8/Canaltech

Como surgiu o Marco Civil da Internet

A ideia do Marco Civil surgiu a partir de um artigo do professor e pesquisador Ronaldo Lemos, publicado em 22 de maio de 2007, que expressava a necessidade de se criar um marco regulatório com regras e responsabilidades claras sobre o uso da internet antes de uma definição de regras criminais.

“Naquela época, a ideia que existia era a criação de uma lei criminal para a internet, que tinha o potencial de tornar ilegais vários usos da rede. Foi nesse momento que surgiu a ideia de que a primeira lei sobre a rede no país deveria ser uma lei civil, que protegesse direitos como a liberdade de expressão, a privacidade, a soberania nacional etc.”, conta Lemos em conversa com o Canaltech.

O Marco Civil da Internet foi elaborado a partir de um processo de discussão e consulta pública que envolveu diversos setores da sociedade brasileira — incluindo acadêmicos, ativistas, empresas de tecnologiaorganizações da sociedade civil e representantes do governo.

“Nossa ideia foi escrever o Marco Civil de forma aberta e participativa por meio de uma grande consulta pública realizada online e também em reuniões presenciais no Brasil todo. Em 2009 lançamos a consulta pública do Marco Civil, para debater o que a sociedade brasileira queria da internet. Na sequência elaboramos o texto da lei com base nas contribuições e colocamos o texto em consulta novamente. Esse processo todo levou 2 anos”, explica o professor.

Em 2011, um anteprojeto de lei foi apresentado ao Congresso Nacional, mas não avançou de imediato. Após algumas modificações e ajustes, o texto final do Marco Civil foi aprovado pelo Congresso e sancionado pela então presidenta Dilma Rousseff em 23 de abril de 2014.




Marco Civil da Internet surgiu como resultado de um processo de discussão e consulta pública (Imagem: Glenn Carstens-Peters/Unsplash)

Marco Civil da Internet surgiu como resultado de um processo de discussão e consulta pública (Imagem: Glenn Carstens-Peters/Unsplash)

Foto: Canaltech

O que diz o Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet foi uma das primeiras legislações no mundo a abordar de forma abrangente os direitos e responsabilidades dos usuários, provedores e empresas que operam na internet. Entre os temas abordados pela Lei estão:

Neutralidade da rede

Estabelece que os provedores de acesso à internet devem tratar todos os dados de forma igualitária, sem discriminação por conteúdo, origem, destino ou serviço.

Privacidade dos usuários

Determina direitos relacionados à privacidade e proteção de dados dos usuários, exigindo consentimento explícito para coleta, uso, armazenamento e tratamento de informações pessoais.

Liberdade de expressão

Protege a liberdade de expressão online, salvo em casos de violação de direitos ou conteúdos ilegais, os quais podem ser objeto de remoção mediante decisão judicial.

Responsabilidade dos provedores

Define as responsabilidades e limitações dos provedores de internet quanto ao conteúdo gerado por terceiros, preservando a liberdade de expressão, mas exigindo a retirada de conteúdos considerados ilegais mediante ordem judicial.

Função social da internet

Define que a internet deve ser utilizada para promover o desenvolvimento econômico, cultural e social, além de garantir a inclusão digital e o respeito aos direitos fundamentais.



O Marco Civil defende também a função social da internet, a fim de garantir o acesso à informação e a inclusão digital (Imagem: Reprodução/Freepik)

O Marco Civil defende também a função social da internet, a fim de garantir o acesso à informação e a inclusão digital (Imagem: Reprodução/Freepik)

Foto: Canaltech

“O Marco Civil funciona como uma Constituição para a rede no país, equilibrando direitos legítimos como a liberdade de expressão e a segurança e coibição de delitos. Por ter assegurado a neutralidade da rede, permitiu a chegada rápida no Brasil de serviços de transmissão de vídeo, como a Netflixdos games multiplayer e outros. Além disso, apoiou todo o ecossistema de inovação no país, incluindo os serviços digitais e também o combate à criminalidade digital. Ele cumpre esse papel ainda hoje”, conta Ronaldo Lemos.

O que pode melhorar

Para a advogada especialista em direito digital, privacidade e proteção de dados Antonielle Freitas, o Marco Civil da Internet trouxe avanços significativos na democratização do acesso à informação e na proteção da privacidade e dos dados dos usuários, mas ainda há desafios a serem superados.

“Um dos principais desafios é a necessidade de aprimorar a efetividade das medidas de responsabilização dos provedores de aplicação por conteúdo gerado por terceiros”, diz a especialista. “A interpretação e aplicação do artigo 19 do MCI ainda geram debates e divergências, especialmente no que diz respeito à definição do que é um provedor de aplicação e aos limites de sua responsabilidade”, prossegue.

Para Freitas, há também a necessidade de uma constante atualização das leis para acompanhar a evolução tecnológica e a complexidade das plataformas online. “A revisão e atualização do Marco Civil da Internet, considerando as novas realidades e desafios do mundo digital, podem ser um passo importante nessa direção”, explica.



Novas tecnologias, como a IA, podem exigir uma revisão do Marco Civil (Imagem: Reprodução/Freepik)

Novas tecnologias, como a IA, podem exigir uma revisão do Marco Civil (Imagem: Reprodução/Freepik)

Foto: Canaltech

Para o advogado Matheus Puppe, sócio da área de TMT, Privacidade & Proteção de Dados do Maneira Advogados, apesar dos avanços do MCI, o cenário digital evoluiu muito em uma década e há questões que a Lei não está equipada para endereçar.

“Embora o Marco Civil tenha sido um precursor na proteção de dados, a posterior Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) trouxe um arcabouço mais detalhado sobre o assunto”, comenta. “No entanto, a interação entre estas duas leis ainda pode ser aprimorada, especialmente no que tange à aplicação e fiscalização efetiva dos direitos dos titulares de dados e das obrigações das entidades operadoras de dados pessoais”, prossegue.

O advogado sugere ainda a necessidade de um código ou livro de direito digital mais abrangente que possa “endereçar a complexidade e a natureza multifacetada do ambiente digital moderno”, incluindo diretrizes para novas tecnologias como IA, grandes dados e Internet das Coisas (IoT).

Marco Civil como inspiração

Entretanto, para Ronaldo Lemos, o Marco Civil da Internet não precisa de revisão. “Ele ainda representa o equilíbrio essencial entre os diversos princípios que incidem sobre a internet”, diz o idealizador da lei. “As propostas legislativas que modificam o Marco Civil e estão em discussão hoje apresentam soluções inferiores ao texto do Marco Civil, algumas com o potencial de causar desequilíbrios preocupantes”, continua.

Segundo o professor, outras leis sobre internet e tecnologia podem conviver com o Marco Civil e se inspirar no seu processo de elaboração. Isso vale inclusive para a necessidade de regulamentar a inteligência — Lemos revela o lançamento de uma consulta pública chamada “O que queremos da IA?” nos mesmos moldes da consulta que gerou o Marco Civil da Internet. “A ideia é repetir as contribuições da sociedade feitas no processo do Marco Civil, só que agora para IA”, finaliza Lemos.

Tendências no Canaltech:

Fuente