Um estudo pioneiro analisou as trajetórias de vida de três mulheres transgénero portuguesas que fizeram a transição numa fase mais avançada da vida – depois dos 50 anos de idade. A ideia de que “ainda há tempo para ser feliz” – como o próprio título do estudo indica – foi fundamental para desencadear o processo, conclui a pesquisa realizada por uma equipa de investigação da Universidade de Aveiro e publicada na semana passada na revista científica Pesquisa Qualitativa Global em Enfermagem.

Tudo começou com o objetivo de analisar que fatores contribuem para o bem-estar no envelhecimento das pessoas que pertencem à comunidade LGBT. Chegou-se à conclusão que a “maior parte da literatura” não se centra nesta fase da vida, mas “muito mais” na adolescência e juventude, e a que existe “tem tendência a focar-se naquilo que corre menos bem, ou seja, problemas de saúde mental e física, questões de violência e discriminação”, explica ao Expresso a investigadora e professora Liliana Sousa, que assina o trabalho juntamente com Rita Carvalho, Sara Guerra, João Tavares e Tatiana Casado.

A equipa decidiu então realizar um inquérito on-line sobre generatividade, legados pretendidos e satisfação com a vida, para perceber o que importa para as pessoas com 50 ou mais anos que se “autoidentificam como pertencendo à comunidade LGBT”. O estudo mostrou que, além de “variáveis comuns” para um envelhecimento saudável na maioria da população, há algumas “específicas” nesta comunidade.

São três os fatores, desde logo “fazer o divulgação ou saindo para todas as áreas da vida”. “Há pessoas que só fazem para alguns amigos, outras só para a família. Fazer em todas as áreas da vida é quando a pessoa se assume na vida social, no trabalho, em todos os aspetos”, nota Liliana Sousa. Ter recebido apoio ao longo desse processo, seja de família ou amigos, sentindo que “não estavam sozinhos”, é outro dos fatores identificados, a que se junta a participação atual em atividades sociais, por exemplo “contribuir para a própria comunidade, para os direitos das pessoas LGBT”.

Os participantes do inquérito foram questionados sobre a disponibilidade para uma futura entrevista para analisar trajetórias de vida e legados, um aspeto “muito importante na velhice porque o legado é quando a pessoa sente que deixou alguma coisa às gerações futuras e que, mesmo após morrer, há uma contribuição simbólica que fica”, destaca a docente. Foi a partir daí que surgiu o estudo agora publicado, focado em três mulheres, com idades entre os 56 e os 65 anos, que fizeram a transição após os 50.

A análise aponta para seis capítulos que representam as experiências das três ao longo dos percursos de vida: a consciência de “algo diferente em mim”, estar presa ao sofrimento, encontrar conforto em algo que é socialmente reconhecido, sentir que é altura de “reconhecer e abraçar a mulher que sou”, viver a vida como mulher e construir e deixar um legado.

Alexandra Teixeira é mãe de um jovem trans de 23 anos e vice-presidente da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Liberdade de Género (AMPLOS)

TOMAS ALMEIDA

Que voz é esta?

A motivação para avançar na decisão passou, por um lado, por um “processo de autodescoberta”, refere Liliana Sousa. “Uma pessoa agora com 65 anos nasceu antes do 25 de abril. Na altura, a questão não era falada. Embora as pessoas sentissem que havia qualquer coisa diferente em si, durante muito tempo nem sabiam o que era. Há uma autodescoberta que é tardia”, retrata a investigadora. Por outro lado, existe uma perspetiva de finitude, de pensar “já passei do meio da minha vida e, se quero ser feliz e fazer isto, agora que sei o que é que se passa comigo, é a hora, para ainda ter tempo de viver com a minha identidade autêntica”.

Isto porque, a certa altura, estas mulheres “encontram conforto em conformarem-se com algo”. “Umas conformaram-se em casamentos heterossexuais e outra conformou-se em ser ou assumir-se como homossexual, porque era conhecido. Há mais conforto em ser algo que se sabe o que é do que em ser algo que não se sabe o que é.”

Perceber que “ainda há tempo para ser feliz” foi, de facto, fundamental para desencadear o processo, ao longo do qual funcionou como “facilitador” contactar com “outras pessoas que vivem o mesmo”, ou seja, “conhecer outras pessoas trans, o que é que sentiram, como é que foi a descoberta”, assim como ter “bom acompanhamento psicológico ou psiquiátrico”.

A “grande mudança” vivida envolve a “transição social”, assumindo a identidade perante os outros, e as vertentes legal e médica, ainda em curso. “É brutal fazer esta transição, mas é brutal no bom sentido, porque à medida que a vão fazendo, vão-se sentindo cada vez mais felizes. São histórias muito inspiradoras”, sintetiza Liliana Sousa.

O estudo salienta a existência de “uma lacuna na investigação sobre o envelhecimento transgénero” e os “desafios específicos e únicos” associados. Em relação aos “fatores preditores do bem-estar” das pessoas da comunidade LGBT, “sabe-se muito do que é negativo, mas sabe-se pouco do que é positivo”, diz a professora. “Por exemplo, um dado que não se pode ter a certeza, mas é um indicador que temos, é que quanto mais cedo as pessoas fazem o saindomaior é a satisfação com a vida”, ilustra.

“Todas estas mulheres sofreram opressão, violência e discriminação significativas ao longo das suas vidas. Enfrentaram o bullying e o assédio dos pares, a pressão da família e até ameaças de violência. Apesar destes desafios, todas elas encontraram a coragem para fazer a transição e viver as suas vidas de forma autêntica”, realça o trabalho. “As suas histórias são um testemunho da sua resiliência e mostram que é possível ultrapassar a adversidade e viver uma vida plena e com significado.”

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