Há aproximadamente um mês, Estrasburgo acordou com um clima ameno dentro do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), com as decisões dos três primeiros casos climáticos. A resposta da Grande Câmara era aguardada por câmaras e microfones de todo o mundo, cientes de que estávamos perante um momento histórico no sistema europeu de proteção de direitos humanos.

Como seria de esperar, os casos desta trilogia tiveram desfechos diferentes. Dois deles não foram considerados admissíveis por razões processuais e um deles comprovou a violação de dois direitos da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), criando um legado importante para outros casos pendentes.

Caso Quaresma

Este caso que envolve um antigo autarca francês revelou-se o mais fácil de descartar na sua admissibilidade. Numa decisão de duas dezenas de páginas, o Tribunal considerou de forma unânime que o requerente não preenchia o estatuto de vítima, sobretudo por já não viver e não manter uma ligação suficiente com Grand-Synthe, a localidade francesa onde foi autarca e que está mais vulnerável a cheias.

Caso Duarte Agostinho

O caso que envolvia seis jovens portugueses ⁠também conseguiu ser ouvido pela Grande Câmara, porém não foi considerado admissível, seguindo um raciocínio mais complexo assente em razões processuais que se dividem em três pontos:

  • Jurisdição – É reconhecida a jurisdição de Portugal, enquanto Estado onde habitam os requerentes, mas é rejeitada a jurisdição de todos os outros Estadosnão existindo base na Convenção para uma extensão da jurisdição territorial na forma sugerida pelos requerentes. Aliás, o teste para o estabelecimento amplo da jurisdição levaria à falta de previsibilidade do alcance da jurisdição e insegurança para os Estados, abrindo a jurisdição a todas as partes do mundo, porventura em linha com a jurisprudência alemã Neuebauer.
  • Não foram esgotadas as vias de recurso internas – Os requerentes não deram oportunidade aos tribunais nacionais para se pronunciarem sobre as queixas de violação dos seus direitos. O Tribunal considera existirem meios para tutela dos mesmos, nomeadamente o direito ao ambiente consagrado no artigo 66.º da nossa constituição, a Lei 19/2014 que define as bases da Política de Ambiente, a recente Lei de Bases do Clima, as vias de recurso administrativas, os mecanismos de responsabilidade civil não contratual do Estado e o Decreto de Lei 147/2008 que estabelece o regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais, permitindo o nosso sistema a ação popular, que se enquadra mais com o que verdadeiramente alegam.
  • Estatuto de Vítima: Os magistrados recusaram analisar o estatuto de vítima dos seis jovens, por considerem existir uma falta de clareza na qualidade individual de vítima dos requerentesque no entender do Tribunal pode ser explicada também por não terem cumprido com o esgotamento das vias de recurso internas.

Em suma, o TEDH descarta estender a jurisdição da CEDH, função essa que caberia aos Estados, o que reforça a ideia de que estamos perante um sistema que ainda não se encontra apto a lidar com fenómenos globais como as alterações climáticas. Por sua vez, o TEDH sublinha não ser um tribunal de primeira instância, devendo-se respeitar o princípio da subsidiariedade.

Tal entendimento, que valoriza o quadro jurídico português, incentiva os jovens a procurar agora os tribunais portugueses para valerem os direitos que consideram estar em causa, por meio de ações mais adequadas à natureza do caso. No concerne ao estatuto de vítima nestes casos, este é apenas densificado no caso suíço.

Caso ClimaSeniores

O caso que envolve idosas suíças foi o único caso considerado admissível, reconhecendo o Tribunal uma violação do artigo 8.º da CEDH – Proteção da vida privada e familiar (com 16 votos a favor e um contra) e uma violação do artigo 6.º – direito a um processo equitativo (por unanimidade).

Em maior detalhe, o Tribunal aponta que a confederação suíça não tomou medidas adequadas, nomeadamente de criar quadro jurídico doméstico relevante, incluindo mecanismos que permitissem quantificar e delimitar a emissão de gases com Efeito de Estufa. Ademais, não cumpriu no passado as suas metas de redução, nem agiu de forma atempada para atenuar estes impactosexcedendo a sua margem de apreciação e falhando com o cumprimento de obrigações positivas.

Sobre o direito de acesso efetivo a um tribunal, um dos aspetos do processo equitativo, e aqui relacionado com o esgotamento das vias de recurso internas, os tribunais suíços não deram razões suficientes para considerarem desnecessário avaliar os méritos dos casos e ignoraram as evidências científicas apresentadas, restringindo o acesso a tribunal de tal forma e extensão que a própria essência do direito foi afetada.

Apesar de estabelecer que quatro dos requerentes não têm estatuto de vítima no presente caso, o TEDH considera que a associação em causa tem a capacidade para apresentar queixas que resultem das alterações climáticas, nomeadamente sobre a saúde, bem-estar e qualidade de vida. Essa legitimidade processual de uma associação assenta no facto de estar legalmente estabelecida, demonstrar que o seu propósito é defender os direitos humanos dos seus membros ou de outros indivíduos dentro da jurisdição do seu Estado e ser capaz de demonstrar que está genuinamente qualificada para agir em nome destes. A validação destes critérios pelo TEDH será relevante para casos futuros, porventura também noutros domínios.

Não obstante, em casos climáticos, para que os requerentes sejam individualmente considerados como vítimas, deverá existir “uma alta exposição a efeitos adversos das alterações climáticas” e “uma necessidade urgente de assegurar a proteção individual do requerente”. Esses critérios devem ser aplicados com rigor, segundo o TEDH, apesar do entendimento que o estatuto de vítima deve ser interpretado de forma evolutiva e não dever ser aplicado de maneira rígida, mecânica ou inflexível.

No fim, não tendo existido um pedido pelos requerentes de indeminização por danos, o Tribunal decretou o pagamento pela Suíça de 80 mil euros, apenas em relação a parte das despesas e custos processuais, não definindo exatas medidas a tomar pelo Estado dada a natureza essencialmente declaratória da decisão e a complexidade do assunto em questão, deixando ao Estado a escolha das medidas adequadas a cumprir com as suas obrigações, sob supervisão do Comité de Ministros.

Em síntese, apesar de nem todos os casos serem considerados admissíveis, ficou claro o impacto das alterações climáticas nos direitos humanos e a existência de obrigações de mitigação dos Estados, porque os danos na esfera dos indivíduos não são “meramente especulativos, mas reais e altamente prováveis (ou virtualmente certos) na ausência de ações corretivas adequadas”. Da mesma forma, o TEDH não acolheu o argumento “gota no Oceano” que pretende ilibar os Estados da sua responsabilidade, por individualmente não terem possibilidade de atenuarem este flagelo, dado que a ação climática de cada Estado contribui significativamente para criar a confiança mútua necessária para os outros Estados agirem.

Todavia, é de sublinhar que o TEDH procurou precaver a abertura de uma caixa de Pandora que tornasse monotemático este Tribunal, evitando o recurso abusivo à sua jurisdição. Para isso, estabeleceu também alguns critérios interessantes que aguardaremos para perceber a sua real dimensão, e considerações que serão interessantes de aplicar a Estados, como os da União Europeia, sujeitos a metas mais ambiciosas e regulamentações mais rígidas.

Não é, no entanto, totalmente claro, o modo de apuramento de responsabilidade de cada Estado e como ultrapassaremos questões jurídicas sensíveis colocadas pelas alterações climáticas, que nos permita ter um sistema coeso e com previsibilidade. No seio do Conselho da Europa, parte da resposta passará pelo Comité de Ministros e pela ambição dos Estados Membros de reforçar este sistema, não só na salvaguarda da estrita execução das decisões do tribunal, mas também no reforço e desenvolvimento do sistema da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tornando-o apto a lidar com realidades mais complexas e preeminentes.

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