Não é novidade nenhuma que o conservadorismo tende a andar de mão dada com valores religiosos. Isto acontece por todo o mundo, incluindo Portugal. Dada a crescente atividade mediática dos conservadores de direita, muito se tem falado sobre “valores morais”, a importância da família tradicional e o perigo da “cultura acordei” — termo usado como forma depreciativa por conservadores para identificar pessoas feministas que aceitam a diversidade real de orientações sexuais e identidades de género. É curioso, mas não surpreendente, que no mais recente compêndio de artigos conservadores, Identidade e Família, a grande maioria de referências citadas são religiosas. Ora, tendo eu sido criada Católica, crismada, catequista, salmista — que depois deixou de frequentar a Igreja por questões óbvias — tenho muito a dizer sobre isto.

A mudança de perspetiva de Deus

No Antigo Testamento, assistimos a um Deus vingador, que incute medo para que acreditem n’Ele, que castiga, que ameaça. “Se me amas, sacrifica o teu primogénito” (Livro do Génesis); “Quem não pintar a porta com sangue de cordeiro, verá o seu primogénito morto” (Livro do Êxodo). Obsessão por primogénitos à parte, este era um Deus que prometia amor se os discípulos provassem que O amavam. Ora, esta relação de amor não me parece muito saudável. A verdade é que, no Novo Testamento, Deus enviou o Seu Filho para passar uma nova mensagem de amor: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Assim, no Novo Testamento, protagonizado por Jesus Cristo, vemos uma mudança de abordagem, uma aceitação imensa da diversidade e um Jesus que, analisado segundo o que hoje sabemos, era feminista. Jesus não julgava mulheres que na altura eram acusadas de desafiar os valores morais, mesmo as adúlteras, ou que tinham relações sexuais fora do casamento. Assim, tratava homens e mulheres com o mesmo cuidado, não as tratando como secundárias ou inferiores.

A discrepância entre os ensinamentos de Jesus e o conservadorismo de valores católicos

Jesus era a favor da diversidade e anti-capitalista. Afinal, era apologista da simplicidade, oposto às grandezas. Quem tiver dúvidas, que leia o Novo Testamento. Mesmo assim, vemos uma direita conservadora obcecada por valores morais tendo em conta os ensinamentos católicos. Repare-se que as citações maioritariamente usadas no referido livro Identidade e Família são de homens da Igreja ou do Catecismo Católico e não de ensinamentos de amor cristão. Enquanto a Fé não é, nem pode ser considerada, um problema, já que tê-la ou não é uma questão de liberdade, a sua aplicação na vida real pode ser questionada, nomeadamente na doutrina Católica. Deus não escreveu o Catecismo Católico, Jesus não delineou os sacramentos como hoje os vemos acontecer. Foram os homens (leia-se homens não como “seres humanos”, mas sim como pessoas do género masculino). Acima de tudo, estes valores morais conservadores de cariz religiosa afastam-se muito dos valores cristãos.

Olhemos para a noção de família tradicional: o pai, a mãe, os filhos. Há uma obsessão pela família tradicional como resposta para todos os males do mundo da “cultura acordei”. No entanto, Jesus não tinha uma família tradicional. Maria, que viu a sua virgindade tão empolada que se tornou parte do seu nome, estava prometida a José, mas deu à luz o filho de Deus, não sendo biologicamente filho de José. Esta Sagrada Família tão amada pelos Católicos não era, de todo, uma família tradicional. Mais ainda, na altura, por não o ser, foi tão vítima de preconceito que toda a gente lhe rejeitou guarida quando Maria precisava de um sítio para dar à luz. Jesus, o filho de Deus, devido ao preconceito social, teve de nascer num estábulo, com uma manjedoura de palha. Ora, o preconceito que Maria e José sofreram não é muito diferente do preconceito que os conservadores mostram contra famílias consideradas não convencionais. Atrevo-me a dizer que dada esta contradição, Jesus era bem capaz de chamar hipócritas a estes conservadores.

A Família de Amor

Há uma frase de Pedro Afonso em Identidade e Família que importa realçar: “A família é a escola do amor, onde se é amado e se aprende a amar.” Isto, sim, é a definição de uma família ideal, se ele só tivesse dito isto. A que tem amor, o incondicional. Repare-se que o amor incondicional, que é o de Deus e se reflete, tendo em conto a vista conservadora, na família. Uma família que ama incondicionalmente é o mais importante para o crescimento saudável das crianças. Ou seja, não é preciso que seja tradicional, apenas que tenha amor. Entre uma família de pai e mãe e filhos em que há violência, ansiedade constante e discussões, ou entre uma família em que o casal, anteriormente infeliz, se divorcia, mas consegue encontrar uma co-parentalidade equilibrada, penso que não será difícil de escolher qual é melhor para os filhos.

Pensemos, ainda, numa família composta por um casal de mulheres com uma criança e que são felizes, comparando com uma criança que cresce a ver o pai bêbado a bater na mãe e a pedir desculpa no dia a seguir, de forma regular. Qual criança construirá uma noção mais saudável do que é amor? Garantidamente a primeira. Assim, ao invés de querermos propagar a noção de família tradicional como resposta para todos os males, não deveríamos antes estar a propagar uma noção de família que tenha mais felicidade do que ansiedade, mais aceitação do que culpabilização?

A família com amor que não seja tradicional é bem melhor que uma família tradicional com violência e falta de amor.

A verdade é que estas noções reais de família, que não a tradicional — a monoparental, a co-parentalidade, a maternidade/paternalidade em comunidade, os pais/mães homossexuais — vêm destabilizar uma ordem que era fácil de compreender e processar nos cérebros das pessoas conservadoras. E ninguém gosta que um estranho venha desarrumar a nossa despensa. Se por um lado percebo como esta desestabilização de perceção de realidade possa incomodar, porque é natural rejeitarmos o que nos é estranho, pelo menos à primeira vista, por outro entendo esta negação de realidade como algo infantil. Como a criança que tapa os olhos e acha que se tornou invisível aos outros. Por isso, quando Pureza de Mello diz que as pessoas feministas, que protegem as minorias de poder, que promovem movimentos anti-racistas e pró-LGBT “ameaçam a ordem social como a conhecemos”, ela tem razão, e ainda bem. No entanto, continua dizendo que as pessoas acordou (detesto esta denominação, mas adiante) fazem crer que as pessoas cisgénero são menos autênticas, quando tal não é verdade. Os movimentos LGBT e Feministas não impedem ninguém de viver a sua identidade e orientação sexual, seja ela qual for. Assim, não tiram a oportunidade a ninguém de ter uma família tradicional, de ser heterossexual, de conceber filhos, de ser dona de casa. E não é por taparem os olhos que a diversidade deixa de existir.

Anseio pelo dia em que os conservadores sejam uma minoria de poder. No entanto, não lhes desejo a luta que as minorias de poder de agora têm de enfrentar. Afinal, já não vivemos no Antigo Testamento. Em verdade vos digo, não queremos vingança, queremos igualdade.

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