A Alemanha, muitas vezes vista como motor da Europa e potência económica de primeira linha, tem uma história complexa e um legado marcante no século XX. Com cerca de 84 milhões de habitantes, foi o centro de duas guerras mundiais e abrigou um regime político ferozmente antidemocrático, que mergulhou a Europa num caos de guerra, destruição, morte e genocídio. No entanto, este mesmo país emergiu das cinzas para se tornar uma das nações mais modernas e pluralistas do mundo, abraçando a diversidade e assumindo um papel de liderança no contexto europeu e global.

Apesar de se ter transformado num país política e culturalmente avançado, a Alemanha continua a enfrentar desafios internos significativos. A reunificação, após a queda do Muro de Berlim e o fim do regime comunista, não garantiu um desenvolvimento homogéneo por todo o país. A antiga Alemanha de Leste permanece menos desenvolvida, com sinais de pobreza e ressentimento, evidenciados tanto na arquitetura como na economia, no acesso ao emprego, na industrialização e na mentalidade. Estas desigualdades, ainda presentes em 2024, são um legado da divisão do pós-II Guerra Mundial e demonstram que o processo de integração está longe de estar concluído.

É neste contexto de desigualdades sociais que ganham força o radicalismo, o extremismo, o discurso de ódio e a culpabilização de populações estrangeiras. Estas correntes políticas não procuram soluções, apenas expressam protestos e frustrações. Foi este sentimento de desigualdade e de protesto fácil que permitiu a ascensão do nazismo, com as trágicas consequências que se seguiram.

A Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema-direita pertencente à mesma família europeia do Chega e em cujo último congresso André Ventura foi um dos oradores, tem crescido ao explorar retóricas xenófobas e técnicas de manipulação que lembram tempos sombrios. Esta tendência representa uma ameaça não só para a Alemanha, mas para toda a Europa e para o projeto europeu. E é neste sentido que se torna fundamental compreender a questão da extrema-direita alemã e as “ideias e métodos” que tem exportado para o resto do espaço europeu, especialmente num ano de eleições europeias e quando, no final do verão e no outono, serão eleitos os parlamentos regionais nos estados alemães da Saxónia, Brandeburgo e Turíngia. Estes estados situam-se, curiosamente, no leste da Alemanha, onde as sondagens apontam para uma vitória da AfD.

Foi numa conversa com dois amigos alemães que tive um importante entendimento: Liza, berlinense de 22 anos, estudante de mestrado na Universidade Humboldt de Berlim e votante de esquerda no Partido Verde diz: “A AfD está a ganhar popularidade entre os jovens devido à insatisfação geral na minha geração. Apesar de conhecerem os perigos do extremismo de direita, preocupa-me que muitos jovens eleitores que apoiam a AfD estejam dispostos a aceitar ou ignorar as ideias da extrema-direita para expressarem as suas frustrações”. Stephan, da Baviera, advogado de 47 anos, dirigente, deputado e autarca do Partido Liberal (FDP), diz também: “A crise dos refugiados pressiona as autoridades locais a fornecerem habitação, creches e escolas. A falta de habitação, problema crónico em muitas cidades alemãs, dificulta a integração dos refugiados, causando tensões sociais e políticas. Algumas comunidades sentem-se sobrecarregadas com o influxo de novos habitantes”.

A conversa fez-me perceber que muitos portugueses e europeus ignoram duas questões cruciais, que o presidente do CDS-PP, Nuno Melo, mencionou no seu discurso no último congresso do partido e também na apresentação da lista da AD ao Parlamento Europeu, onde Sebastião Bugalho foi apresentado. Primeiro, a importância das próximas eleições europeias no contexto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia; segundo, a necessidade de fortalecer o projeto europeu. Além disso, muitos não compreendem o perigo dos extremismos, sejam de direita ou esquerda, para a nossa sociedade e para o futuro de todos nós. Em tempos de guerra às portas da Europa, compreender estes problemas e as suas consequências negativas é fundamental para a manutenção da paz e da estabilidade no continente.

Nos últimos anos, o cenário político europeu mudou com o surgimento de movimentos que desafiam o declarar queo e trazem uma agenda além de questões tradicionais como corrupção ou orientação sexual. Um exemplo é a AfD, liderado por Alice Weidel, mulher homossexual de extrema-direita, mãe adotiva de duas crianças, cuja parceira é estrangeira e não residente de forma permanente na Alemanha. Contudo, a principal razão para o crescimento da AfD não se baseia nestas questões, mas na imigração e na situação económica. Se prestarmos atenção, é isso que se destaca.

RUI DUARTE SILVA

O Mundo a Seus Pés

A transição da indústria dos combustíveis fósseis para energias renováveis, mudança necessária para combater as alterações climáticas, trouxe consigo um aumento significativo nos custos de produção. Esta alteração teve um impacto particularmente negativo para a Alemanha, que construiu a sua reputação como centro industrial de excelência. A transição para a energia verde exige investimentos consideráveis e uma reestruturação profunda da indústria, o que pode comprometer a competitividade alemã a curto prazo e é um problema real que preocupa os alemães.

Simultaneamente, a indústria automóvel enfrenta dificuldades devido à tendência global de migração dos motores de combustão para a mobilidade elétrica. A Alemanha não acompanhou esta mudança de forma consistente, pondo em risco milhares de empregos e a sua posição no mercado global de automóveis. O impacto desta transição no sector automóvel tem já consequências não só económicas como sociais, afetando comunidades inteiras que dependem desta indústria. Nem é preciso mencionar a enorme dependência energética que a Alemanha tem da Rússia e os problemas e impactos económicos que lhe trouxe a guerra na Ucrânia.

Outro problema significativo é o desenvolvimento demográfico. A geração dos baby boomers está a entrar na idade da reforma, criando escassez significativa de mão de obra qualificada. A imigração poderia ser uma solução para esta lacuna, mas a Alemanha, ao contrário de outros países europeus, não conseguiu integrar adequadamente os imigrantes no mercado de trabalho nem dar-lhes a formação necessária. Além disso, os elevados impostos e contribuições sociais tornam a imigração de mão de obra qualificada menos atrativa.

O sistema de pensões alemão, que se baseia num modelo de repartição, em que os trabalhadores ativos sustentam os reformados, enfrenta desafios devido ao envelhecimento da população e ao número reduzido de trabalhadores ativos. Esta pressão demográfica é terreno fértil para o crescimento do populismo. A AfD tem crescido a explorar o descontentamento de muitos que sentem que os partidos tradicionais não estão a resolver os seus problemas. Esta ascensão complica a formação de maiorias no centro-direita — entre a União Democrata-Cristã/União Social-Cristã (CDU/CSU) e o FDP —, que recusa coligações com a extrema-direita, criando uma ameaça à estabilidade política e aumentando a polarização do voto, cenário semelhante ao que acontece em Portugal com a AD e a IL em relação ao CH.

Para enfrentar estes desafios, os partidos do centro-direita precisam de trabalhar em soluções mais eficazes que fortaleçam a classe média e recuperem a estabilidade económica do país. Atualmente, a elevada carga fiscal está a impedir que jovens trabalhadores avancem nas suas carreiras, dificultando a aquisição de casa própria ou a poupança para o futuro, cenário igualmente visto em Portugal. Se a Alemanha não abordar estes problemas de forma decisiva, a estabilidade política e económica poderá ser ameaçada a curto prazo.

A AfD, aproveitando-se desse contexto, lançou uma campanha com um discurso anti-imigração. A liderança carismática de Weidel e a capacidade do partido de capitalizar o descontentamento popular através das redes sociais e dos jovens foram fatores-chave para o rápido crescimento. A narrativa vive da ideia de que a imigração em massa ameaçava a identidade nacional e punha em risco a segurança dos cidadãos. Além disso, também explorou a insatisfação dos eleitores com a UE e a globalização. O partido defende uma postura mais nacionalista e protecionista, alegando que a Alemanha deve priorizar os interesses nacionais em vez de se submeter às decisões de Bruxelas, um discurso semelhante ao de Ventura em Portugal.

Ao fazer uma relação com a realidade portuguesa, podemos observar semelhanças entre o comportamento da AfD na Alemanha e o Chega em Portugal. O CH tem ganhado força ao abordar questões que vão além da corrupção, género e orientação sexual. Assim como a AfD, o CH tem colocado a imigração como uma das suas principais preocupações. Mas não deixa de ser curioso que o CH se sinta próximo da AfD, apesar de a sua liderança representar tudo o que o CH diz combater: a homossexualidade, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. A inconsistência e a demagogia do CH são gritantes.

Núcleo ‘Os 230’ em Bruxelas

O CH tem argumentado que a entrada descontrolada de imigrantes em Portugal pode ameaçar a segurança e a identidade nacional. Como a AfD, o CH explora o medo e a insegurança dos eleitores, promovendo a ideia de que a imigração é responsável por problemas como o aumento da criminalidade, a pressão sobre os serviços públicos e a falta de integração dos imigrantes na sociedade portuguesa.

Tal como a AfD, o CH tem adotado uma retórica nacionalista e populista, criticando a UE e defendendo uma postura mais soberana para Portugal. Ventura argumenta que Portugal deve priorizar os interesses nacionais. Esta mensagem ressoa com uma parcela da população portuguesa que se sente marginalizada e desiludida com os partidos tradicionais. No entanto, é importante salientar que a imigração não é o único fator que explica o crescimento do CH em Portugal. Assim como na Alemanha, a crise económica e a desigualdades sociais desempenham um papel importante.

Muitos eleitores sentem-se excluídos e desiludidos com a classe política tradicional (PS; PSD e CDS-PP), que parece distante dos seus problemas e preocupações; assim, o CH capitaliza essa insatisfação e prometeu dar voz aos “esquecidos”. Muitos argumentam que os discursos anti-imigração e nacionalistas promovidos por estes partidos são discriminatórios e prejudiciais para a coesão social, mas eles continuam a crescer nas sondagens e no voto popular.

O crescimento da AfD nas sondagens nos últimos meses, chegando ao segundo lugar com 23% das intenções de voto, reacendeu o debate sobre os perigos que o partido representa para a democracia alemã e o projeto europeu. Este debate ganhou ainda mais relevância quando se soube que membros da AfD participaram numa reunião onde se discutiu um “plano mestre” para deportar migrantes e “cidadãos não assimilados”, fazendo lembrar o nazismo. Embora o partido tenha tentado distanciar-se deste evento, a verdade é que alguns dos seus membros mais influentes estiveram presentes, com figuras associadas ao movimento neonazi. Estes factos, juntamente com o conteúdo do “plano mestre”, são preocupantes e sugerem um ressurgimento de ideologias perigosas na Alemanha e na Europa.

A estabilidade política na Europa enfrenta desafios crescentes devido ao ressurgimento de movimentos extremistas e ao enfraquecimento das lideranças tradicionais. Com a erosão do consenso democrático, figuras como Angela Merkel e Jacques Chirac são lembradas pela sua capacidade de diálogo e compromisso. Em contraste, os líderes atuais lutam para alcançar a mesma influência, tornando as eleições europeias cada vez mais cruciais para definir o rumo do continente.

A Europa está num momento crítico, com extremismos e lideranças enfraquecidas a ameaçar a estabilidade. A história alemã mostra-nos o que pode acontecer quando extremismos ganham terreno. Desafios como imigração, desigualdade e polarização política criam um ambiente propício ao populismo. Os exemplos da AfD, do CH e de Viktor Orbán na Hungria mostram que o discurso do ódio e a retórica nacionalista estão a ganhar força, ameaçando o projeto europeu, que se baseia em valores de solidariedade e democracia. E a questão da Ucrânia continua e continuará presente

A importância das próximas eleições europeias não pode ser subestimada. A participação dos eleitores é essencial para eleger líderes comprometidos com a coesão social, a paz e a estabilidade política. O futuro do continente está em jogo.

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