Estamos a viver em Portugal um momento de Convenção, ou seja, de “governo convencional”, em que o poder executivo se desloca para a sede do poder legislativo.

Entre outros riscos (como os de um “carro sem travões”) as negociações do Governo com forças sindicais podem ser inviáveis, com todas à espera que a aliança PS/CHEGA lhes dê tudo o que desejam.

E, como tudo tem a ver com tudo, os primeiros 30 dias do Governo Montenegro não lhe correram tão bem como por certo desejava.

CHERINGONÇA: PODER SEM RESPONSABILIDADE

Alguém chamou “Cheringonça” à aliança objetiva PS/CHEGA, que se explica – para além do temperamento de PNS e de Ventura – em especial por duas razões:

a) Nas sociedades contemporâneas altamente reguladas, a atividade governativa é muito legislativa, o que reforça as condições para o exercício do poder parlamentar quando não há bloco maioritário de apoio ao governo;

b) No sistema constitucional português o Governo fica indefeso pois, pelo menos aparentemente – desde que respeitem o regime da “lei travão” –, as oposições podem avançar na Assembleia da República com soluções políticas alternativas às do Governo, desse modo substituindo partes substanciais e essenciais do Programa de Governo que não foi rejeitado há semanas.

De algum modo isto é o resultado natural do governo não ter apoio maioritário, pois em situações desse tipo é dificilmente resistível a tentação de maiorias mais ou menos ad hoc se imporem.

Mas, aqui e agora, ajuda muito a essa missa outro fator que nunca ocorrera no sistema democrático: dois partidos, o PS e o CHEGA, estão em competição pela liderança da oposição e vai ganhar – ou ao menos ambos pensam isso – o que conseguir fazer avançar mais propostas populares próprias e bloquear mais medidas impopulares (ou menos populares) do Governo.

Ou seja, vive-se em Portugal um momento de poder sem responsabilidade (dos partidos desafiadores, no caso o PS e o CHEGA) e de responsabilidade sem poder (do partido incumbente, no caso a AD).

Como é evidente, eu seria capaz de falar muito tempo sobre isto do ponto de vista do interesse nacional, da ciência política comparada, da lógica do sistema constitucional, do valor da ética e, até, da estética.

Mas não creio que valha a pena ocupar o vosso tempo com isso. Prefiro olhar para o tema de um ponto de vista da política pura, ou – em linguagem mais chã – assumir que as coisas são como são.

O que talvez valha a pena é dedicar uns minutos para tentar perceber um pouco melhor como sairemos daqui. A não ser que consideremos que – pela primeira vez na História –um governo convencional (poder sem responsabilidade) vai resultar. Essa não é a minha opinião.

E também não é opinião do socialista João Leão, antigo ministro das finanças de António Costa, que compara esta situação a um “carro sem travões”, o que leio como um sério aviso para Pedro Nuno Santos ter cuidado, que pela entrevista dele ontem na SIC parece que foi ouvido…

CHERINGONÇA: COMO SAIR DAQUI?

As únicas soluções em abstrato que afinal existem (o que chamaria as 4 vias para evitar o apocalipse) são as seguintes:

  1. O PSD faz um acordo de governo que lhe assegure uma maioria;
  2. Os dois concorrentes resolvem tentar a sua sorte e formar uma maioria conjunta;
  3. Até ao final do ano o PSD decide entregar a solução do impasse aos eleitores;
  4. Antes disso, o PS e/ou o CHEGA desistem de decisões conjuntas na Assembleia, passando a ter o cuidado de fazer oposição e não governo alternativo.

Creio que não vale a pena perder tempo com as duas primeiras hipóteses: o PSD nesta conjuntura não se pode aliar a nenhum dos outros; e nem eles o desejam (o PS, claro, mas o CHEGA também, pelo menos enquanto achar possível o “sorpasso” como fez Meloni). E nem na ficção científica mais fora da realidade o PS e o CHEGA se coligariam.

A terceira hipótese (PSD causar eleições) é a mais natural, se olharmos para o problema do ponto de vista da prática constitucional.

No entanto, na realidade isso é improvável: se o PSD não tiver dados de sondagens e outros estudos de opinião inequívocos no sentido de que os portugueses estão contra o governo convencional, não vai arriscar abrir uma crise política.

Mas se o PSD tiver esses dados inequívocos, o CHEGA e o PS também os terão e nesse momento o governo convencional acaba de morte natural. O que seria a última das quatro hipóteses que apresentei.

Como o mais provável é que não ocorram esses sinais claros, será que não há nenhuma saída para o impasse?

PODE O PS SALVAR-SE COM O ORÇAMENTO?

Talvez haja uma saída. Chama-se votação do Orçamento para 2025, a qual deve ocorrer em finais de novembro, ou seja, daqui a pouco mais de 6 meses.

Essa votação será inevitável e o Orçamento não passará se um dos coligados no Governo Convencional se não abstiver (PS) ou não votar a favor (CHEGA).

Tal como as coisas estão, será improvável o Orçamento passar. Por isso a queda do Governo acontecerá… se o Presidente da República não decidir mantê-lo em gestão durante mais de um ano (até depois da eleição do novo Presidente da República) o que mesmo para Portugal seria uma loucura excessiva.

O CHEGA não vai votar a favor do Orçamento sem Acordo de Governo nas suas condições: com razão ou sem ela, acha que em eleições no início de 2025 vai aumentar à custa da AD a sua votação e o número de deputados.

Realmente se alcançar mais 16 deputados, e a AD menos 15, passa a ser o partido mais votado à Direita. E, se não conseguir, pelo menos acha que aumentarão muito os que na área moderada se resignarão a uma coligação, então até em melhores condições para Ventura.

Resta o PS.

É evidente que (objetivamente) ao PS não interessa causar uma crise política, por várias razões, a maior delas sendo que é muito improvável que em 6 meses a Esquerda passe de 92 deputados para 116, uma subida de 24 (ou de 26%).

Vejam graficamente a dificuldade, até porque se o PSD perder deputados é normal que perca também para o CHEGA e IL.

Mas pode não ter alternativa política a correr esse risco. Para o evitar tem de começar a preparar o seu eleitorado para isso …acabando com a “cheringonça” antes do Verão.

Assim sendo, apenas se evitará a crise política se o medo do PS a eleições em janeiro de 2025 for maior do que o medo de se abster e ver o CHEGA votar contra assumindo louros de líder da oposição.

Isso depende, claro, da força dos moderados no PS. Mas, para tal ser possível, algo terá de fazer o Governo: conseguir criar até novembro uma perceção favorável nos portugueses, o que por enquanto não parece estar (ainda?) a acontecer.

CADERNO DE ENCARGOS DO GOVERNO

Para criar essa perceção, há que ter presente a conjuntura que é a nossa. A que resumi na passada semana quando enumerei os desafios internos e externos que exigem uma função presidencial de muita qualidade. E a que resulta do que acabei de referir.

Em resumo, o caderno de encargos para o Governo parece-me ser o seguinte:

  1. Vitimizar-se, mas para isso não pode queixar-se de amanhã e atacar com brutalidade à tarde;
  2. Ter consistência na sua estratégia e não deixar que se sinta que cada ministro segue a estratégia e usa o estilo que mais lhe apeteça;
  3. Ter uma política de comunicação coordenada e de excelência (mas não paralisante por ser burocrática) e não pensar que está no tempo do cavaquismo, em que o líder dizia em público que não lia jornais e os ministros eram proibidos de dar entrevistas;
  4. Dar aos portugueses a sensação de que está formalmente desejoso de negociar com as oposições e demonstrar que são elas que tornam impossível os consensos, sabendo – se e quando for caso disso – ser manhoso e hipócrita como a política sempre exigiu.

Os sinais mais recentes são pouco favoráveis. A substituição do CEO do SNS e da Mesa da Santa Casa da Misericórdia, a ideia de pequenos delinquentes serem chamados para as Forças Armadas, a estratégia muito mais cautelosa do que se esperava na negociação com sindicatos de áreas muito vocais da função pública, a acusação ao anterior governo de manipulação das contas públicas ou de decisões sem cobertura orçamental para esgotar os meios financeiros do novo governo, são alguns bons exemplos.

Para o que aqui se analisa pouco importa que sejam boas decisões mal comunicadas, más decisões ou o resultado comunicacional da hostilidade (já se percebeu que maior do que seria de esperar) dos “media”.

É verdade que “o primeiro milho é para os pardais”, mas não pode ser assim se o milho for pouco.

Admito também que haja uma estratégia subjacente a esta aparente falta de estratégia.

Por vezes não é só Deus, mas também a Política, que “escreve direito por linhas tortas” e o campeonato a sério só começa depois do Verão. E, como sabem os sportinguistas (este ano merecendo parabéns), ganhar o campeonato até ao Natal não serve de muito.

Mas as eleições para o Parlamento Europeu serão importantes para a perceção política: se a AD ficar atrás do PS e o CHEGA subir muito, a perceção de que pode haver vida para além do Orçamento pode morrer daqui a um mês. Ou ficar muito machucada.

O ELOGIO

O elogio vai para o PSD que atingiu a idade redonda de 50 anos, com uma capacidade de resiliência que espanta por vezes, pelo menos a mim.

Já dado moribundo ou ferido de morte, mas renasceu lambendo as feridas.

Mas talvez não tenha desafio maior do que está a viver atualmente. Veremos, mas está de parabéns.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Hoje sugiro dois romances que pouco têm em comum, mas que se sugerem também por isso.

A reedição de “Que importa a fúria do mar” (Relógio de Água), de Ana Margarida de Carvalho, e “Nem por isso” (Oficina do Livro), de Maria Roma (nome literário da viúva de Diogo Freitas do Amaral) são as sugestões.

Do ambiente da revolta dos vidreiros da Marinha Grande, em 1934, aos tempos atuais de uma burguesia cosmopolita, vai uma distância que se declina de várias formas.

Seguramente que não haverá unanimidade aí em casa em relação a ambos, haverá quem ache que gostará apenas de um ou apenas do outro. Mas isso é mais um motivo para sugerir que leiam os dois.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

Uma sala cheia de jovens cabo-verdianos recebeu a confissão do nosso Presidente da República de que não está caquético e que rejuvenesce 25 anos de cada vez que dá uma aula.

E os leitores do EXPRESSO foram informados que a saúde de Marcelo Rebelo de Sousa “não é tema”.

Nunca achei ou defendi (e não vi ninguém a fazê-lo) que possa haver nele um problema de caquexia. A vitalidade do Presidente e a sua resistência física são proverbiais e as suas funções vitais parecem estar bem.

Claro que em países que prezam mais a transparência, são divulgados relatórios regulares sobre a saúde de quem ocupa cargos cimeiros unipessoais.

Mas interpreto o que ele disse como a reação a uma dúvida, que afeta muito mais pessoas do que se calhar se admite em Belém, no sentido de assegurar que os comportamentos recentes do Presidente não resultam nem são acentuados pelo estado da sua saúde.

Fico contente que assim seja. Sinceramente. E quero, também sinceramente, acreditar que Marcelo se não está a enganar a si próprio.

Daí a pergunta: acha o Presidente normal, mesmo para alguém com as suas caraterísticas, partilhar com a imprensa de todo o Mundo o estado das suas relações com filho e neto? Ou dizer que Montenegro e Costa são rural ou oriental? Ou chamar maquiavélica à Procuradora Geral da República em relação à investigação criminal? Ou informar o Mundo de que Portugal deve pagar reparações financeiras pelo seu passado?

E, sendo assim, quando é que nos pede desculpa pelo que – falando como Presidente em nome de todos nós – disse e que mereceu discordância generalizada?

E, finalmente, não acha que seria uma boa ideia instituir em Portugal uma tradição de divulgação de um relatório médico anual, pelo caminho sossegando os seus amigos, a esmagadora maioria dos portugueses que genuinamente gosta de si e o admira, e aqueles que como Henrique Monteiro e eu próprio desejam sem qualquer dúvida ou hesitação que seja feliz e saudável?

A LOUCURA MANSA

André Ventura tem um doutoramento em Direito e afirmou que iria apresentar queixa-crime contra o Presidente da República por “traição à Pátria”.

Esse gravíssimo crime ocorre, e apenas, se um titular de cargo político “tentar separar da Mãe-Pátria, ou entregar a país estrangeiro, ou submeter a soberania estrangeira, o todo ou uma parte do território português, ofender ou puser em perigo a independência do País”.

Um caloiro de Direito sabe que o Presidente nada fez que justifique essa imputação. Pode ser discutível o que declarou sobre reparações financeiras a antigas colónias, a oportunidade ou a forma como o fez.

Mas acusar de crime? Deste crime? Que me dizem disto os que acham que um acordo de governo com o CHEGA é a solução para Portugal?

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