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Sobre a passagem do tempo | Crónica

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A minha filha tem quase quatro anos e frequenta um infantário a cerca de dois quilómetros de casa. Levo-a até lá praticamente todos os dias da semana. Nos últimos meses, comecei a reparar numa rapariga grávida com um rapazito pela mão que seguia a pé em direção ao infantário. O miúdo é colega da minha filha. À medida que as semanas passavam e a barriga aumentava, questionava-me sobre quanto tempo faltaria para o nascimento. Um dia, deixei de a ver. Deduzi o óbvio. Hoje, voltei a vê-la. Empurrava um carrinho de bebé, onde o rapazito, que me pareceu mais alto, se segurava.

Poema sobre a passagem do tempo.

Deixei a pequenita no infantário e dirigi-me ao barbeiro. Pelo caminho, cruzei-me com um senhor de bicicleta. Desde que me lembro que o vejo a andar de bicicleta de um lado para o outro. Ele já era velho (devia ter uns 40 anos; foi naquela fase da vida em que olhamos para alguém no viço da idade adulta e julgamos inimaginável estar naquele lugar) quando reparei nele pela primeira vez, já lá vão uns 35 anos. “Este vai envelhecer bem”, dizia para mim quando o via.

Revi-o hoje, com uma mola da roupa de madeira a prender a perna das calças para que não se enrole na corrente e a pedalar na mesma pedalada de sempre. Sou capaz de jurar que a mola e a bicicleta ainda são as mesmas. E ele não me pareceu tão velho como há 35 anos. O meu olhar mudou tanto…

Com estima, tudo envelhece bem.

O senhor da bicicleta é alto e tem a cabeça coberta de cabelo branco. Faz-me lembrar o meu avô João de Oliveira, cujo cume era um nevão. Chamavam-lhe Cristo-Rei. Não pelo cabelo, naturalmente. Mas eu não sabia quem era o Cristo-Rei e achava que o meu avô nascera com pernas de girafa e adorava pendurar-me nelas enquanto ele caminhava. Cada passada era uma voltinha num carrossel. Ainda viajo naquela passada que o tempo nunca estreitou.

As nossas marcas indeléveis.

Passos que damos todos os dias a percorrer os caminhos que percorremos ao longo da vida. Caminhos com distâncias díspares para cada um de nós. Um caminho longo para um pode ser um caminho curto para outro. Depende da passada. E da vontade de percorrer o caminho. Há lá melhor forma de envelhecer do que escolher aceitar ou não a extensão dos caminhos. Cada um de nós pode perfeitamente interromper um caminho por não sentir que o deve percorrer por inteiro, se não o fizer feliz ou tranquilo ou uma série de outras coisas que se podem escolher (ao contrário de envelhecer). Não será isso escolher como se envelhece?

Sentado na cadeira de barbeiro, observei pelo espelho um senhor a levantar-se com dificuldade. Uma senhora mais nova ajudava-o. Logo que se pôs em pé, endireitou-se e começou a caminhar. Não tirei os olhos dele.

— É o Sr. Nobre, tem 103 anos segredou-me o Harvey, meu amigo e barbeiro, ao reparar na atenção com que eu seguia o senhor.

A sério? Dava-lhe uns 80 para responder

Conduziu até aos 101 e só foi ao médico depois de velho, ou seja, quando deixou de trabalhar. Era comerciante e bebe um copo de vinho todos os dias.

Incrível! exclamei com o entusiasmo de quem teve uma ideia (a de que partilharia o episódio nesta crónica) e, ao mesmo tempo, questionei-me sobre se o segredo da longevidade estará no copo de vinho e, em caso afirmativo, se tinto, branco ou ambos.

Harvey, e não te esqueças do Sr. Lopes que trabalhou no turismo e que já leva 98 —, interveio o Fagner, o barbeiro que tinha cortado o cabelo ao senhor Nobre.

E também cá corta o cabelo o Sr. Murteira, que era alfaiate e que já fez 97 —, eu respondi ao Harvey.

Então e o Sr. Mira, militar de carreira com 98 e que fuma até hoje? —, contrapôs o Fagner.

Rico?! pergunto, enquanto penso nos malefícios do tabaco.

Sim responde o Harvey encolhendo os ombros.

Antes de sair, olhei para o meu reflexo no espelho.

Harvey, há quanto tempo aqui venho?

32 anos.

Tanto?

Fui para casa com mais dúvidas do que certezas sobre o que nos faz envelhecer bem. No caminho, observei o Sr. Paulo e o Pirulitotão velho o dono como o cão, a caminharem ao mesmo passo na berma da estrada.

Envelhecer juntos. Que poema tão bonito.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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