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A ciência de dados tem muito a aprender com as feministas

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Catarina D’Ignazio

Foto de : AzMina

Catherine D’Ignazio, ou Kanarinka, para os mais próximos, é professora no MIT e dirige o laboratório dos sonhos de muitas mulheres: o Laboratório de Dados + Feminismoque usa dados e métodos computacionais com foco em igualdade de gênero e raça. Além de artista e designer, ela é pesquisadora e cientista de dados, mãe, hacker e feminista. Em 2020, ao lado de Lauren Klein, publicou o livro Feminismo de Dados (Feminismo de Dados), usando a história do ativismo e do pensamento crítico feminista para propor práticas de ciência de dados mais éticas e igualitárias.

Agora, ela lança Contando o Feminicídio: Feminismo de Dados em Ação (Contando o Feminicídio: Feminismo de Dados em Ação) pela mesma editora, um estudo de caso extenso sobre o ativismo popular de dados de base para acabar com a violência de gênero. Numa longa conversa com AzMina, Catherine D’Ignazio discutiu a fundo o feminismo de dados, falou sobre suas aplicações práticas e seu potencial para transformar uma área essencialmente masculina.

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AzMina: Como começou a sua carreira acadêmica e científica?

Catarina D’Ignazio: Comecei cedo porque meu pai ensinava professores a usarem tecnologia na sala de aula. Cresci com computadores, e trabalhava com ele nas férias, ensinando professores a fazerem websites. Cursei Arte e Design e Desenvolvimento de Software, e voltei para a pós-graduação depois de um tempo. Fui para o laboratório de mídia do MIT em 2012, no auge da empolgação com a ciência de dados, como vemos com a Inteligência Artificial agora.

Na época, me chocava a falta de crítica no discurso. Ninguém perguntava de onde vêm os dados, quem produz, quem coleta, quem usa, para fazer o quê? Por que há dados sobre umas coisas, e não sobre outras? E foi assim que começou: eu queria trazer mais críticas e, no meu caso, com uma lente explicitamente feminista, de quem entende que as questões de poder são determinantes, e não desaparecem magicamente só porque você está usando dados.

AzM: Você enfrentou barreiras de gênero no seu campo profissional? Que estratégias usou para superar esses desafios?

CI: Com certeza. Logo no início fui fazer uma entrevista e o cara disse que eu era boa, e que ia me apresentar ao time para ver o que eu achava. E disse: “mas eles não vão achar que você é programadora”. Essas coisas aconteciam o tempo todo, e isso me afetou, porque direta ou indiretamente, eles seguem dizendo que você não pertence. É comum que as mulheres fiquem com posições mais juniores, ou para a área de front-end e design, em vez de back-end e banco de dados.

Eu persisti para não me prender a essas mensagens, mas ainda carrego um complexo de inferioridade. Especialmente naquela época, eu realmente acreditei que não era qualificada.

AzM: E você encontrou aliados?

CI: Ao mesmo tempo, posso dizer que vários colegas homens me ajudaram. Quase não trabalhei com mulheres no início, mas tive chefes que me motivaram e se dispuseram a me ensinar. Gosto de dar crédito a eles por isso, porque precisamos de mais homens que, sentados nas posições de poder, abram a porta e digam: “entre, eu vou te apoiar”.

Os homens têm um papel essencial na justiça de gênero, assim como as pessoas brancas têm um papel enorme na justiça racial. Às vezes até critico programas que se concentram apenas em mulheres e meninas, porque sinto que também precisamos conversar com os homens e ensiná-los a se ‘desprogramar’ do patriarcado, a trabalhar em solidariedade com as mulheres e pessoas LGBTQIA+.

AzM: Como a ciência de dados pode ajudar a combater a desigualdade de gênero?

CI: De formas muito diretas. Em Feminismo de Dados e no meu novo livro [Contando o Feminicídio] falo bastante sobre falta de dados sobre desigualdade. Muitos dados relacionados à vida das mulheres e minorias de gênero não são coletados, são esquecidos ou pouco estudados. Por exemplo, na economia, há vários estudos sobre trabalho assalariado, e muito pouco sobre o trabalho doméstico, o trabalho de cuidado.

Precisamos de mais dados sobre gênero, mas não como um instrumento de marketing. É preciso cuidado em falar apenas sobre o que falta, pois podemos acabar estigmatizando as mulheres. “Aquelas pobres mulheres, elas ganham menos dinheiro, não conseguem ser contratadas, têm mais responsabilidades de cuidar dos filhos”. Isso pode fortalecer a prática de retratar as mulheres como vítimas sempre que for conveniente.

AzM: Isso vale para o grande volume de dados sobre violência contra as mulheres?

CI: Sim, e isso pode perpetuar essas narrativas estigmatizantes e provocar a resposta errada. A resposta errada é quando o Estado intervém de modo paternalista, como um protetor, mas não se ocupa de fato dos direitos das mulheres. Não tem qualquer perspectiva feminista, age como o patriarcado de sempre, fadado a reforçar a desigualdade de gênero.

AzM: O que te fez escrever um livro sobre dados e feminicídio?

CI: Na verdade, seria um artigo. No primeiro livro, Feminismo de Dados, incluímos um estudo de caso sobre o trabalho da ativista mexicana Maria Salguero organizando dados sobre feminicídio. Me interessei pelo perfil dela e nos conectamos. Então, conheci Helena Suarez Val – hoje minha amiga e colaboradora do Uruguai -, Silvana Fumega, da Argentina, e resolvemos entrevistar grupos que tivessem um trabalho parecido para escrever um artigo.

A lista não parava de crescer, e vimos que havia uma rede incrível de ativismo de dados, especialmente na América Latina. Percebemos que países tão diferentes quanto Uruguai e Canadá tinham trabalhos muito similares metodologicamente, numa ciência de dados que envolvia a ética do cuidado e da memória, com justiça e responsabilidade – uma ciência de dados cidadã.

AzM: Além do livro, houve outros resultados concretos?

CI: Nas entrevistas, perguntamos o que poderíamos fazer para apoiar o trabalho delas, e as respostas eram sempre sobre estar juntas. Então, criamos eventos para as ativistas se conhecerem, em inglês, português e espanhol, e se tornou um movimento transnacional. Conseguimos trocar e produzir tecnologias juntas. Escrevi livros, outras colegas escreveram artigos, posts para blogs, relatórios. Cada uma faz sua parte para construir justiça e trabalhar em solidariedade.

AzM: Você acredita que o feminismo interseccional é a ‘cola’ que une vocês?

CI: Com certeza. Claro que há muita variação de cultura, política, histórica, mas todas usam a perspectiva feminista. À medida que entrevistamos as ativistas de dados, descobrimos que elas eram muito mais sofisticadas do que as cientistas de dados convencionais, entendendo o papel do poder, do preconceito, nas diversas formas de violência, sempre muito conscientes das deficiências do campo.

AzM: Poderia dar um exemplo disso?

CI: Entrevistamos grupos que monitoram questões indígenas. Apesar de usarem a perspectiva feminista, elas combinam isso com o que eu chamaria de métodos indígenas, ou uma perspectiva decolonial. Um grupo do México disse: “somos as mais invisibilizadas das invisibilizadas”, em relação às múltiplas camadas de marginalização. Elas trazem uma epistemologia de dados própria da visão de soberania indígena, mesmo além das fronteiras nacionais. Por isso, muitas rejeitam o próprio Estado, e se recusam a dialogar, não querem esse reconhecimento.

AzM: É possível equilibrar a necessidade de insights baseados em dados com a amplificação de vozes de grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras?

CI: É muito difícil, mas espero que seja possível. Precisamos muito construir o que chamo de política de coalizão, ou de solidariedade, onde não necessariamente compartilhamos objetivos, mas ajudamos umas às outras a chegar a algum lugar juntas. Dá para reconhecer as nossas diferenças e, ao mesmo tempo, apoiar as lutas de outras pessoas, e receber apoio delas.

Acho fundamental a visão do feminismo negro, de que nenhuma de nós é livre até que todas sejamos. Meu lugar social me abre certos espaços – meu privilégio de raça, minha classe -, mas ainda me coloco em outras lutas. Não sei sobre o Brasil, mas as feministas dos Estados Unidos – feministas brancas, em particular – têm um péssimo histórico de fazer acordos com o patriarcado. “Queremos o voto agora. Depois trabalharemos para que as mulheres negras possam votar”.

AzM: Qual o papel dos dados para desafiar o sistema de opressão que termina no feminicídio?

CI: Durante a pesquisa para o livro, as ativistas trouxeram o conceito de ciência de dados transformadora e restaurativa. A ideia é usar o que temos para trabalhar diretamente na recuperação e redução de danos para as pessoas impactadas pelo feminicídio. Para agir, precisamos saber quantas pessoas morreram, quantas famílias foram afetadas, quem precisa de auxílio financeiro, etc.

Além de trabalhar a longo prazo para transformar, precisamos trabalhar agora para reparar. O trabalho de longo prazo ajuda na conscientização e sensibilização do público, da política, da lei e da mídia, e isso demora. Não é algo que vamos resolver com uma lei ou uma política.

AzM: Quais foram as maiores surpresas da sua pesquisa?

CI: Falo disso no capítulo 5, quando pergunto como elas guardam os dados. Se é numa planilha, num banco de dados, quais as categorias. Há um padrão: a maioria das ativistas considerava suas bases um espaço sagrado e memorial. Eu nunca havia pensado nisso. Para mim os dados sempre foram só uma ferramenta, e até meio chata. Mas elas tratam cada linha com esse cuidado incrível, se aprofundando em cada pequena informação sobre a pessoa, num compromisso de não deixar a vítima ser esquecida, e também retratá-la positivamente.

A maioria do conteúdo produzido sobre as vítimas de feminicídio é sensacionalista e tendencioso, de um jeito que você não quer que seu familiar seja lembrado. O caso que mais me emocionou foi ouvir de uma ativista dos Estados Unidos que faz questão que seu banco de dados tenha uma foto de cada pessoa. Ela passa horas pesquisando, e se não acha uma foto boa, edita e retoca a imagem, para a vítima ter uma imagem digna.

AzM: Você diria que opressões como o racismo, a lesbofobia, a transfobia, se cruzam no cenário do feminicídio?

CI: Sem dúvida. Talvez a intersecção mais comum seja com a classe social. A opressão de gênero já acontece porque as mulheres ganham menos dinheiro, e ficam em relacionamentos violentos por falta de segurança financeira.

Nos Estados Unidos, temos um problema enorme com o feminicídio racializado. É uma das formas mais comuns de morte para mulheres negras e indígenas entre 20 e 35 anos. Além disso, temos muita violência do Estado que afeta desproporcionalmente as mulheres não brancas.

AzM: Que frutos você espera desse trabalho?

CI: O primeiro público que quero realmente atingir são ativistas feministas de dados. Quero ler o livro com elas, debater, unir essa rede transnacional de trabalho e chegar a lugares bem diferentes. E também quero muito que o livro seja traduzido para português e espanhol.

Acho que temos um bom modelo de como fazer ativismo de dados orientado para a justiça social, dialogando de forma crítica com as famílias e comunidades, promovendo inovações éticas a partir do trabalho de base. Há muitas lições que a ciência de dados convencional pode aprender com ativistas de dados contra o feminicídio.

O que estamos discutindo sobre ética de Inteligência Artificial e de dados, princípios da tecnologia, é criado pela elite financeira e política, enquanto os debates de quem está na ponta têm muito mais potencial.

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