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Em nome do povo

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Ensinei Direito na Universidade, fui Juiz, fui governante na área da Justiça, fui Vogal do Conselho Superior do Ministério Público, sou atualmente Advogado. Talvez por isso, e apesar de escrever com regularidade na imprensa, sempre evitei tratar temas estritamente jurídicos.

Mas eis que, perante a confusão reinante na esfera pública, acerca de uma nova e hipoteticamente grave crise na justiça (lembre-se que estas crises são recorrentes no nosso discurso coletivo), bem como sobre a urgência de a reformar, decidi quebrar o silêncio e somar algumas palavras ao debate em curso.

Adianto, desde já, que não me pronunciarei sobre qualquer caso em concreto, nem darei opinião sobre qualquer política anunciada para o sector. Procurarei, isso sim, clarificar o que me parece estar na origem da confusão: de que falamos quando falamos de Justiça e quem é que efetivamente a exerce em nome do povo.

Para simplificar o argumento, terei em vista o que se designa por justiça penal, ainda que as considerações possam ser estendidas, com as necessárias adaptações, às outras áreas do Direito.

Será que, quando falamos de investigação criminal em toda a sua complexidade, desde abertura de averiguações preventivas, passando pela recolha de meios de prova, como buscas, apreensão de bens, vigilâncias, recolha de dados digitais, escutas telefónicas, estamos a fazer justiça?

Será que o Ministério Público, ao coordenar esse trabalho, coadjuvado pelos diversos órgãos de polícia criminal, está a fazer justiça?

Será que, quando o Ministério Público propõe medidas de coação sobre os arguidos para ajudar na respetiva investigação, como por exemplo a prisão preventiva, está a fazer justiça?

Será ainda que, quando o Ministério Público, perante indícios fortes da probabilidade do cometimento de um crime, acusa um cidadão ou uma pessoa coletiva está a fazer justiça?

Para quem ouvir o que vai por aí, a resposta só pode ser afirmativa. Isto é, para a perceção comum, em todas estas circunstâncias, está a fazer-se justiça, é a justiça a funcionar, é a justiça a falhar, é a justiça a interferir na política, é a justiça a pôr em causa a democracia, o Estado de Direito, etc.

Perceção comum, aliás, reforçada por três caraterísticas do nosso sistema: a existência de um paralelismo estatutário entre Procuradores e Juízes; a coabitação de ambos nos mesmos edifícios dos Tribunais; e não menos importante do ponto de vista simbólico, a mesma posição nas salas de audiência. Características quase sem igual, na maior parte das democracias demoliberais, por esse mundo fora.

Mas será mesmo assim? Será que essa perceção corresponde à realidade? Será que o nosso sistema jurídico-constitucional considera que estamos aqui perante a Justiça, enquanto poder soberano que se exerce em nome do povo?

Ou será que a Constituição reserva a Justiça para quem diz o Direito, o que é justo, em cada caso concreto: os Tribunais nas suas diversas instâncias, através dos seus titulares, os Juízes?

É que, grande parte da confusão no nosso espaço público, umas vezes por desconhecimento, outras por evidente má-fé, assenta muito neste equívoco. Ou seja, confunde-se o trabalho preparatório da Justiça, de inquestionável valor, levado a cabo pelo Ministério Público, coadjuvado pelos diversos órgãos de polícia criminal, cujo valor e inquestionável, com a Justiça propriamente dita.

Confunde-se o que está montante e é instrumental, com o que é decisivo e constituiu o poder final no domínio do Direito, a Justiça, essa sim, exercida em nome do povo. Povo que lhe aporta a necessária legitimidade democrática.

E é bom que fique bem claro, o Ministério Público, com toda a salutar autonomia interna e externa, representa uma parte, o Estado, não é imparcial e independente, atributos inerentes, racional e razoavelmente, à realização da Justiça. O Ministério Público responde perante a Justiça, não é a Justiça.

Assim, quando se afirma que a Justiça está em crise, porque não é democraticamente escrutinada, porque interfere com o exercício da política, temos de ter cautela e ver de que falamos.

É que estamos, seguramente, a falar de importantes atividades do Estado, submetidas ao Direito que, padecendo dos seus defeitos ou excessos, são naturalmente escrutináveis e merecem todas as melhorias no seu funcionamento, mas não são a última razãoo soberano exercício da Justiça, necessariamente humana, em quem os portugueses precisam de confiar.

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