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Mestre Manuel Cargaleiro: O adeus a um homem com uma "obra imensa"

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A família não sabia que o filho mais novo já não estudava na Faculdade de Ciências, em Lisboa. Manuel entrou para a Escola de Belas Artes e o pai ficou muito zangado, quando foi informado sobre aquele facto consumado. O pintor e ceramista Manuel Cargaleiro contou o episódio ao Expresso, numa grande entrevista publicada em 2023.

“Fui eu que cheguei a casa e disse: ‘Já não estou na Faculdade de Ciências, entrei para a Escola de Belas Artes.’ Para mim era a vitória. E ele disse-me: ‘Pois é, mas agora já não te dou dinheiro para estudares'”, contou. E continuou: “Mas eu sou muito malandro. No Diário de Notícias havia ‘Lugares Vagos e a Concurso’. E eu concorri para a Caixa [Geral de Depósitos]. Os rapazes que estavam a concorrer perguntaram-me: ‘Vens da escola comercial ou vens do liceu?’ E eu respondi: ‘Venho do liceu.’ Disseram-me: ‘Estás tramado. Porque é preciso saber umas coisas de comercial e tu não sabes nada.’ Bom, mas eu lá concorri. E o chefe da secretaria perguntava a todos os que eram escolhidos: ‘Quais são os seus projetos em relação à Caixa Geral de Depósitos?’ E eu disse: ‘Os meus projetos são estar aqui o mínimo de tempo possível. Eu quero é ir-me embora para a Escola de Belas Artes, que é aqui ao lado.’ Aí, ele disse-me: ‘Então vais para uma repartição onde fazes o teu trabalho. E vou dar ordem para poderes sair quando quiseres, para ires às aulas.’ O tipo viu que eu era tão sincero… Ganhava 1800 escudos e punha 900 escudos no banco, para estar lá o mínimo de tempo possível”.

Mestre Manuel Cargaleiro

A Revista do Expresso

O tempo passado na Escola de Belas Artes foi bem aproveitado, mas o grande salto do artista aconteceu quando foi viver para Paris, em 1957. Viria a tornar-se um dos artistas portugueses mais internacionais, com ligações sobretudo a França e a Itália. Três anos antes de partir para Paris, foi convidado para um almoço marcante em Lisboa. Nessa altura, Cargaleiro tinha duas pinturas na exposição coletiva “I Salão de Arte Abstrata”, na Galeria de Março, em Lisboa. E, quando passou pela galeria, soube que estava convidado para um almoço. O convite partira do casal de pintores Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, que viera de Paris até Lisboa para visitar a mãe de Maria Helena. A partir desse almoço, nasceu uma ligação forte entre Manuel Cargaleiro e o casal de artistascom quem viria a conviver muito em Paris.

Na capital francesa, Cargaleiro continuou a praticar natação, como fez quase toda a vida nos muitos países por onde passou, como contou em 2023 na entrevista ao Expresso: “Se isto funciona [aponta para a própria cabeça]acho que foi por nadar tanto. Era o meu desporto e fez-me muito bem, sobretudo mentalmente. Acho que teve uma influência enorme. Foi isso e fixar muito a pintura dos outros, nos museus, a história da arte. Esse exercício cansa, mas faz bem”.

Na mesma entrevista ao Expresso, Manuel Cargaleiro também falou sobre a relação que tinha com Deus, a propósito da ligação artística e de amizade com Maria Helena Vieira da Silva: “Houve muita maldade. E a Vieira percebeu e eu também, nós falávamos nisso muitas vezes. Houve muita maldade, porque eu era 20 anos mais novo, era outra geração. Diziam que eu copiava a Vieira da Silva. Eu não copiava, eu era sincero com aquilo que fazia. O grande esforço da minha vida foi sempre dizer a verdade, até na pintura. A Vieira da Silva fez a pintura dela. É a pintora das perspetivas. Aliás, uma das coisas que a Vieira da Silva dizia mais, porque era a grande obsessão dela: ‘O que é que está para lá das estrelas? E dos planetas? O que é que está depois? E depois? E depois? E depois?’ E eu dizia-lhe sempre: ‘Ó Maria Helena, aí há uma coisa. É Deus. Aquilo que tu não sabes explicar é Deus. Deus está lá. Quer dizer, quem resolveu estes problemas todos é um senhor que se chama Deus.’ A Vieira ria-se, gostava muito desta explicação. O que é que eu pretendo com a minha pintura? É vertical, horizontal. É ali, é aquilo. É na frente, mas gosto também que haja segredos por trás. Tenho a mania dos segredos, tenho a mania dos símbolos”.

Quem queira procurar os segredos e os símbolos do artista pode agora andar nos metropolitanos de Lisboa ou de Paris, onde há azulejos criados por Cargaleiro. Já em Castelo Branco, pode e deve ser visitado o Museu Cargaleiro, criado pelo artista. E o Seixal tem uma Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, desenhada pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira.

José Fernandes

Manuel Cargaleiro de Alexandre Nobre Pais

Como ceramista, qual foi a importância de Manuel Cargaleiro?

É o mais internacional ceramista da sua geração”, diz ao Expresso Alexandre Nobre Pais, que dirigiu o Museu Nacional do Azulejo em Lisboa e é desde maio o diretor da Museus e Monumentos de Portugal. Aqui fica o seu testemunho: “Cargaleiro acaba por levar a cerâmica produzida em Portugal para outros países, nomeadamente para França e para Itália. Isso é fundamental, para dar voz ao que se produzia em Portugal. É muito apreciado em Itália e em França, tem obra pública nestes locais e isso é um dos aspectos mais relevantes da sua presença na nossa produção cerâmica.

Tal como era pintor, era também um excelente pesquisador da cor na cerâmica. Não por acaso, o arquitecto Siza Vieira chamou-o para escolher a cor dos azulejos do Pavilhão de Portugal na Expo 98.

É um homem que, sendo pintor, procura ter à disposição na cerâmica a paleta cromática que a pintura lhe garantia. Sendo que isso não é muito fácil, porque a paleta na cerâmica é muito mais reduzida do que no óleo ou no guache. Essas são duas das dimensões mais importante de Cargaleiro.

Outro aspeto é o sentido de humor. Era um homem com muito sentido de humor, contava muitas histórias. E a sua obra está sempre plena de alegria, transmite-nos felicidade. Precisamente pela cor, por algumas soluções que encontrou.

Tem um tipo de trabalho que acho muito interessante. A parte de trás dos painéis de azulejo tem números e letras, que nos ajudam depois a montar a obra. E Cargaleiro fez um ovo de Colombo, porque inverteu a lógica. Traz para o primeiro plano o que está oculto e esconde-nos aquilo que seria a obra em si. Deixamos de ver o objeto e vemos aquilo que é a sua montagem. Quando inverte a lógica, é mesmo para nos desconcertar, para nos intrigar”.

José Fernandes

Manuel Cargaleiro por João Pinharanda

“É reconhecido como grande renovador da azulejaria pública desde a década de 1950”, lembra ao Expresso o historiador de arte João Pinharanda, que é desde o início de 2022 o diretor artístico do MAAT: Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa. “O nome e a obra de Cargaleiro são imediatamente reconhecíveis na pintura pelo grande público e pela crítica. Hoje, é urgente aplicar um olhar renovado e revelador sobre facetas essenciais da sua obra plástica (desenho, guache e mesmo pintura) que permanecem ocultas do olhos desse mesmo público mas também da crítica especializada”.

Em 2021, João Pinharanda fez com Manuel Cargaleiro o livro “Manuel Cargaleiro – Uma Vida Desenhada”. E chama a atenção para o desenho, na obra do artista. “O que me parece importante é destacar que a imagem comum e popularizada da sua obra na sua relação com uma matriz vinda da pintura da Vieira da Silva não é correcta nem faz justiça aos seus aspectos mais originais, especialmente no campo do desenho e do guache.”

José Fernandes

Manuel Cargaleiro por Raquel Henriques da Silva

“Foi um incansável trabalhador e, também por isso, a sua obra é imensa, em pintura, desenho, gravura e em várias tipologias de cerâmica”, diz ao Expresso a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva.

“Destaco no seu percurso o modo como circula entre a pintura e a cerâmica, nada habitual no seu tempo porque, tradicionalmente, não se misturava pintura, ‘arte maior’, e ‘cerâmica ‘arte menor’, a não ser em momentos predominantemente efémeros (vide Picasso). Mas considero que é neste campo, por onde ele começou a carreira que a sua obra é incontornável e com reconhecimento internacional justíssimo. Destaco também a sua determinação na internacionalização, numa época (desde 1960) em que tal não era nada frequente e prova que, apesar dos constrangimentos do regime, a determinação e o grande empenho (e muito trabalho) permitiam a um artista ser plenamente contemporâneo, e circular num espaço alargado com uma rede muito qualificada de contactos. Confiante na capacidade de comunicação, especialmente afectiva, da arte abstracta, para ele, as artes plásticas são forma e são cor e a sua ‘linguagem’ tem autonomia plena em relação aos motivos. Por isso desenvolveu uma iconografia pessoal que, no campo da pintura, é, em geral, de fácil identificação. Destaco também a sua militância patrimonialista, exemplarmente concretizada no Museu Cargaleiro de Castelo Branco que reúne um número impressionante de obras próprias, em todas as tipologias em que trabalhou, e uma colecção de cerâmica internacional (sobretudo italiana) de elevadíssimo nível. Finalmente, o seu amor pelas artes populares e as heranças do passado que o levaram a fazer uma excepcional colecção, também disponibilizada aos públicos no Museu Cargaleiro”.

Manuel Cargaleiro de Marcelo Rebelo de Sousa

O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa homenageou hoje Manuel Cargaleiro, numa nota de pesar publicada no site da Presidência da República. “Tendo vivido em Paris desde 1957, Manuel Cargaleiro nunca deixou que o cosmopolitismo significasse desenraizamento. Prova disso é a memória das imagens e das cores da Beira Baixa na sua obra, nomeadamente a lembrança das mantas de retalhos; prova disso igualmente a empenhada presença do artista na região onde nasceu, através da Fundação e do Museu Cargaleiro.

Ceramista e pintor, mas também desenhador, gravador e escultor, Mestre Cargaleiro deixou a sua assinatura em igrejas, jardins ou estações de metro, e em inúmeras peças tão geométricas e cromáticas como as de outros artistas cosmopolitas que viveram em Portugal. Por isso, tendo estado fora décadas, continuou a sentir-se, e continuámos a senti-lo, um artista português.

De Cargaleiro disse Maria Helena Vieira da Silva que possuía a técnica perfeita, a medida certa, as cores raras; e disse Álvaro Siza Vieira que evidenciava uma alegria invulgar no panorama artístico português. Tendo-o condecorado, em 2017, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique e, em 2023, com a Grã-Cruz da Ordem de Camões, o Presidente da República teve a oportunidade de homenagear essas singularidades em breve mensagem para o catálogo da última exposição que fez, texto no qual saudou, e renova agora a saudação, a sua obra jubilosa e luminosa, fiel ao passado e ao presente, a um tempo que é o nosso e que também foi o seu.

O Presidente da República nunca esquecerá o último encontro com Mestre Cargaleiro, semanas atrás, na casa deste em Lisboa, em que continuava a sonhar projetos para o futuro e a acreditar na Vida, sempre prestigiando Portugal”.

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