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David Ferreira: “Fausto surpreendeu por se sentir surpreendido pelos outros, pelos livros que lia, pelos tempos que mudavam”

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Fausto foi um dos maiores escritores de canções que alguma vez ouvi. É verdade que a rádio tem andado esquecida dele – mas essas canções aí estão, para quem queira ouvir onde está a música; e onde manda a surdez.

Fausto pertenceu a uma espécie de geração em que era o mais novo de todos. Quase vinte anos mais novo do que o mais velho, José Afonso, que o convidou para director musical de vários álbuns que gravou depois do 25 de Abril. Ou do que Adriano Correia de Oliveira, de quem produziu os dois últimos álbuns. Ou do que José Mário Branco, que o admirava como guitarrista e escritor de canções. Ou do que Vitorino, em cujo primeiro álbum teve um papel destacado. Ou do que Luís Cília, que o convidou para dois discos. Ou mesmo do que Sérgio Godinho, a quem ofereceu um grande êxito, “Namoro”uma música sua para um poema de Viriato da Cruz.

Fausto musicou vários poetas, tendo o dom de nos convencer que as palavras deles, tão musicais e ajustadas, tinham sido escritas de propósito para as suas canções: Reinaldo Ferreira (“Rosie”), Eugénio de Andrade (“Não Canto Porque Sonho”), Daniel Filipe (“Carta de Paris”), Ernesto Lara Filho (“O Tempo dos Marimbondos”) ou o já citado Viriato da Cruz.

Cantou as viagens dos portugueses, dando uma encenação musical a textos clássicos como a “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e a “História Trágico-Marítim”a. Foi um observador lúcido e desalinhado dos “Tempos que viveu, cantando uma Europa ao mesmo tempo empolgante e armadilhada pelo mercado e a americanização; ou a poluição, visível nas praias; ou as realidades relativamente novas da especulação financeira. E cantou o amor, num registo sempre original: por mulheres com risada rasteiraque suscitam um inexplicável fraquinhoque fazem passar as passas do Algarveque dizem obscenas maravilhas – o por vadiando o asfalto, cruzando outras pontes de mares que são rios.

Fausto surpreendeu muitas vezes por se sentir surpreendido pelos outros, pelos livros que lia, pelos “Tempos” que mudavam e o obrigavam a não teimar cegamente em fés antigas. Percebeu antes dos que partilhavam os seus ideais a realidade da cleptocracia angolana.

Os outros reconheciam-lhe o talento e a solidez da sua preparação musical. Nas suas colaborações em discos de confrades, escutamo-lo várias vezes, exímio tocador de viola; mas também, aqui e ali, percussionista ou recolhendo canções da música tradicional para Adriano as gravar. Esta multiplicidade de recursos colocava-o tão à vontade num registo africano como nas terras do folclore português. Viveu a adolescência em Angola e gostava de contar que nasceu num navio, no Oceano Atlântico. Mas essas duas pátrias musicais que conhecia bem nunca o impediram de explorar um mar diferente, que só a ele pertencia.

Faltam-me agora o tempo e as linhas para tornar esta nota, escrita a quente, um pouco menos sofrível. Até porque as canções do Fausto, densas, inspiradas e inesperadas, merecem todo o nosso tempo – para as ouvirmos mais; e melhor.

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