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Que culpa é esta?

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Agora vai ter de olhar para aqui.
Tem um embrião com cinco semanas e seis dias, sem batimentos.
A gravidez parou de evoluir pouco depois da sua primeira ecografia.
E agora o que é que acontece?
Pronto, agora vou marcar-lhe uma consulta para daqui a uma semana. Vai voltar a ser observada e caso não tenha acontecido nada até lá damos-lhe medicação para provocar o aborto.
Então mas agora vou assim para casa, normal?
Agora vai assim para casa, normal.
E não podem fazer já uma aspiração?
Hoje ninguém lhe vai fazer uma aspiração.
Mas é assim? É esse o protocolo do público? E no privado?
No privado não sei como funciona mas acho que hoje ninguém lhe vai fazer uma aspiração em lado nenhum. Daqui a pouco fecham as urgências dos outros dois hospitais de serviço e ficamos só nós, como habitual.
Mas agora o que é que vai acontecer? Tenho de ir para casa ficar à espera de abortar? O que é que acontece?
Em 50% destes casos a expulsão acontece naturalmente. Tem uma hemorragia, como se fosse a menstruação, mas mais abundante e com mais coágulos, e uma espécie de mini contrações. Se a hemorragia for muito abundante, ou se tiver sensação de desmaio, ou as dores não passarem trinta minutos depois de tomar Paracetamol, deve dirigir-se à urgência novamente.
E como é que eu distingo o aborto de uma hemorragia mais abundante?
Se tiver sangue a sair como se tivesse uma torneira aberta, deve regressar à urgência. Posso chamar o meu marido? Ele vai querer ouvir e pode ter perguntas.
Não temos condições de ter as mulheres e os maridos aqui a circular, se quiser pode ir lá fora dar-lhe a notícia e regressar.
Mas o que é que eu lhe digo? Não sei o que dizer.
Esta não é a notícia que queremos dar, mas infelizmente acontece a 30% das mulheres.

Acho bárbaro e traumático mandarem as mulheres para casa ficar à espera de ver as gravidezes descer pela sanita abaixo.
Compreendo. Mas é este o protocolo.
Agora vai fazer análises e vem ter comigo sexta feira, está bem? Estou cá das 9H às 14H, sou eu que dou essa consulta. Vão ligar-lhe a dizer uma hora.

Estava grávida de nove semanas e um dia quando cheguei à maternidade.
Depois de saber que tinha um embrião, o meu embrião, morto dentro de mim há três semanas, só queria que mo tirassem de lá para poder seguir em frente. A ideia de passar mais uma semana grávida de um aborto tornou-se imediatamente insuportável, cruel, desumana.
A ideia de ter de passar, depois de tudo, por um processo de “mini” indução de parto parecia-me macabra.

Passei a maior parte do dia seguinte sozinha. No escuro do meu quarto chorei tanto a minha perda.
Não era um embrião, não era um aborto, era o meu bebé, o nosso filho. Era o irmão da nossa filha. Era o bebé que eu achava que ia ser menina e que o meu marido achava que ia ser rapaz. Era o nosso bebé e já tínhamos uma lista de nomes. Era a gravidez com que contava e que já tinha condicionado a minha agenda. Fiz as contas aos meses e aos meus compromissos profissionais. Adiei planos. Adiantei e atrasei projectos, reorganizei a minha vida para garantir as melhores condições possíveis para quando viesse o bebé. Pensámos a logística dos quartos, fiquei ansiosa com os vírus que a minha filha pudesse trazer da creche e passar ao bebé, no pico das gripes e com ele tão pequenino, mas íamos ler para aprender como fazer. Pensei no parto, imaginei-me a dar mama outra vez. Preparei mentalmente o momento de apresentar o bebé à nossa filha. Fiquei triste quando me lembrei que ela ia ficar sozinha com o pai enquanto eu estivesse internada com o bebé. Projectei a imagem da nossa família de quatro. Preocupei-me (muito) com a precariedade da nossa situação financeira, mas um bebé, para nós, é sempre uma benção e íamos arranjar forma de resolver.

Senti e ainda sinto muita tristeza. Desolação mesmo. Zanga, frustração, desilusão. Senti, acima de qualquer outra emoção, culpa.

De que lugar vem essa culpa?
Não sei. Acho só que é natural. Li que é a emoção mais comum nestas situações.

E tem todo o sentido. O sentir. Não a efectivação de causa-efeito que a culpa define.
Mas não podes deixar de pensar se foi aquele sushi que afinal te deu toxoplasmose sem reparares. Ou o frango que talvez não estivesse assim tão fresco. A salada que naquele dia não desinfectaste com vinagre. O cigarro que fumaste. O copo de vinho que bebeste. A corrida mais acelerada. A aula de cycling mais intensa. A massagem relaxante quando ainda não sabias que estavas grávida. Aquela vez em que correste tanto para apanhar o autocarro. Levantares as mesas da esplanada do restaurante. Carregares a mercadoria da reposição. Saltares com demasiada intensidade no ensaio. A decisão de seres mãe depois dos 35. O teu sedentarismo. O teu excesso de peso. O nível de stress que vives diariamente no trabalho. A ansiedade que te caracteriza. A vez em que tropeçaste e caíste na rua. O teu corpo que não funciona porque…

Ou a culpa de olhares para a tua filha mas estares tão triste que não és capaz de apreciá- la nem de brincar com ela com a mesma energia.
Ou a culpa por sentires tanto pesar quando já és mãe e há tantas mulheres que vivem tudo isto sem a mesma possibilidade de gratidão que tu tens.

Tenho pensado muito nas tantas mulheres silenciosas que passaram pelo mesmo que estou a passar agora.
E penso, sobretudo, nas mulheres que ainda não têm filhos e no quão mais duro e difícil isto deve ser para elas do que está a ser para mim. E está a ser tão duro para mim! Portanto, culpa, outra vez.

A maneira como me foi comunicado o processo condicionou de certa forma o meu sentir. Senti-me genuinamente confusa.
Se me mandam para casa, com toda a naturalidade, esperar pela eventualidade de sangrar o meu filho para fora de mim, se calhar é suposto ir trabalhar, assim, normal.

Mas como?
É suposto estar no metro a caminho do trabalho e gerir com normalidade o meu aborto, como se fosse a minha menstruação?

Se calhar é mesmo como o período. E ninguém deixa de ir trabalhar porque está com o período. Se calhar estou a dramatizar. Se calhar estou a ser menina, sensivelzinha. Talvez devesse encarar isto com maior sentido prático e menos emoções.

Talvez devesse ir trabalhar amanhã.
A médica nunca me falou em baixa, por isso não deve haver razão clínica para não o fazer.
Para além disso, estamos a menos de um mês para estrear, precisamos de ensaiar, o espectáculo não tem esse tempo. Amanhã vou trabalhar.
Mas quando acordei de manhã senti-me pouco capaz de existir.
Liguei ao meu chefe, expliquei-lhe a situação e fui atendida com compreensão.
Amanhã vou.
Mas “amanhã” comecei, efectivamente, a sangrar.
Lamento muito, mas hoje não posso ir trabalhar, começou o processo físico de expulsão. Toma o teu tempo, tira a semana.
Não temos esse tempo, quarta feira ensaiamos.
Tudo bem.
Mas quarta feira é amanhã e hoje foi o dia em que abortei.

Com muita sorte, o meu corpo expeliu hoje e da forma natural a minha gravidez, dois dias depois de saber que tinha perdido o meu bebé.
E não, não foi como estar com o período.

Comecei a sangrar e ter dores fortes ainda durante a madrugada.
Vim dormir para o sofá.
Justifiquei-o, para mim mesma, com a proximidade à casa de banho, menti, queria passar por tudo em privacidade.
Foi só ao fim da manhã, depois do primeiro banho em três dias, que a dor das contrações intensificou.
Senti-me fraca e nauseada.
Será a sensação de desmaio a que a médica se referiu e é agora altura de pedir ajuda? Não. Não estou a sangrar assim tanto.
Ia à casa de banho e a cada contração fazia força de expulsão.
Pensei que a força de parir viesse do mesmo sítio, agradeci ao meu corpo por me guiar. Depois da terceira contração, na casa de banho, com os pés apoiados no banco que a minha filha usa para lavar os dentes, senti um grande coágulo a deslizar de dentro de mim.
Vai ser gráfico.
Senti uma espécie de alívio fisiológico.

Senti uma grande curiosidade de espreitar o que tinha saído de dentro de mim.
Fui à cozinha buscar os pauzinhos extra que guardamos de cada vez que mandamos vir comida asiática.
Puxei do fundo da sanita uma massa de tecido biológico que me pareceu ser o meu saco embrionário.
Não senti repulsa nem nenhuma outra emoção relacionada com escatologia.
Senti alívio.
Percebi que tinha chegado o fim.
Nem três minutos depois, as dores que pouco antes me tinham empalidecido e deitado ao chão, desapareceram.

Agora, infelizmente, sei o que é ter um aborto espontâneo. E não, não é como o período.

Fuente

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