Home Notícias Jovens da Fundação Casa fazem terapia com animais para curar traumas

Jovens da Fundação Casa fazem terapia com animais para curar traumas

Uma nova turma de crianças advindas de uma casa de acolhimento chegava à fazenda em que acontece o projeto Natureza Conecta, criado por Daniela Gurgel, quando um menino em específico chamou a sua atenção.

A começar pela sua história de vida, que fez com que Daniela apresentasse o espaço a ele individualmente: ele vivia no abrigo pois os pais haviam sido presos. O pai matou seu irmão com extrema violência física, da qual o menino também era vítima constante. Ele chegou à casa de acolhimento com marcas de açoitamento nas costas e com buracos no couro cabeludo. O pai jogava água de bateria na cabeça dele.

Esse menino fugiu de casa, certo dia, e clamou por socorro ao vizinho, que chamou o conselho tutelar prontamente. Ele passou a morar em um dos abrigos parceiros da ONG Natureza Conecta, que oferece terapia com animais a crianças e adolescentes vulneráveis.

Quando Daniela foi apresentar-lhe ao espaço, ele pareceu pouco amigável. Olhou para um dos cavalos e tomou a maçã que estava nas mãos da instrutora, arremessando a fruta contra o animal. Ele olhou firme para os olhos do bicho, que seguiu pastando e ignorou a atitude. O menino ficou chocado. Virou os olhos a Daniela, surpreso: era a primeira vez que ele via uma ação violenta não gerar uma reação também violenta.

Este foi um dos eventos que mais marcou a fundadora da ONG desde 2020, quando foi criada. Daniela é veterinária, e percebeu desde muito cedo como o amor dos animais pode ajudar a curar processos. Para criar a Natureza Conecta, ela contratou um time multidisciplinar, com psicólogas, pedagogas e os chamados co-terapeutas: os bichos da fazenda.

A ideia foi inspirada no projeto estadunidense Green Chimneys, que realiza um trabalho similar desde 1947. Daniela tinha uma propriedade familiar em Itu, no interior de São Paulo, e ao viver um tempo nos Estados Unidos decidiu implementar o método aqui.

Hoje, a Natureza Conecta é membro da Associação Internacional de Organizações de Interação Humano-Animal (IAHAIO), conjunto de instituições que se dedicam à prática da terapia assistida por animais, e trabalha com instituições parceiras. Além das casas de acolhimento, a ONG trata jovens detidos na Fundação Casa.

As terapias com jovens de casas de acolhimento costumam durar entre seis meses e um ano e abrangem grupos de até dez pessoas. A faixa etária é de seis a 18 anos e, a cada fim de ciclo, um novo grupo começa. As sessões com os bichos são semanais, duram duas horas, e acontecem na fazenda de Daniela: na primeira hora, os participantes fazem a terapia de interação com os bichos, e na última hora realizam atividades pedagógicas e artesanais com o intuito de trabalhar traumas.

Semestralmente, são avaliados os resultados do desenvolvimento individual e do grupo por meio da aplicação de questionários e dos registros das atividades nos dois programas. Os dados constaram:



Foto: Arte: Mariana Sartori

As sessões com jovens da Fundação Casa, no entanto, não podem acontecer da mesma forma. Os grupos são menores, de no máximo seis participantes, e eles não podem deixar a Fundação. Então, semanalmente, a ONG transporta os animais até o espaço, e eles ficam no pátio da penitenciária para que o trabalho seja realizado.

“Uma vez a cada seis meses, eles vão até a fazenda, mas é uma grande burocracia. Precisa de autorização judicial. Mas eles gostam bastante”, conta Daniela em entrevista a Planeta.

Nós temos avaliações periódicas, e os resultados do programa são muito bons. Temos um jovem que cometeu um homicídio e era bastante apático, não falava com ninguém. Hoje, ele pede para continuar no programa. Voltou a falar com a família, começou a se relacionar com outras pessoas. As mudanças são muito grandes

– Daniela Gurgel, fundadora da Natureza Conecta

Carinho que começou cedo

Daniela percebeu ainda muito cedo o poder do cuidado de um bicho a um ser humano, e essa percepção se deu por meio de uma experiência própria da qual ela sequer se lembra. Ela havia recém-completado um ano quando a mãe engravidou de novo. Só que, aos seis meses de gestação, ela sofreu um aborto espontâneo em casa, em um dia em que estavam só as duas e o cachorro. Enquanto a mãe sangrava e tinha contrações fortíssimas, Daniela, ainda bebê, foi amparada pelo animal de estimação.

“Foi o primeiro apoio que tive de um animal e, depois disso, foram os bichos que me ampararam em momentos difíceis que vivi. O animal tem o dom de cuidar sem julgar. Ele cria um ambiente seguro de amor incondicional, e isso faz diferença em vários processos pelos quais a gente passa”

– Daniela Gurgel, fundadora da Natureza Conecta

A renda da ONG vem principalmente de doações, empresas apoiadoras e emendas parlamentares. Daniela coloca, ainda, recurso próprio no projeto, e afirma que a ONG está caminhando para ser uma organização sustentável que ande com as próprias pernas.

“Estamos em um programa de aceleração de ONGs, cujo objetivo é expandir. Então queremos aumentar em 50% o número de atendidos no segundo semestre, para que no ano que vem haja um aumento de mais 50%”, explica Daniela.



Foto: Arte: Mariana Sartori

Hoje, a Natureza Conecta trabalha com quase 40 animais de diferentes espécies: são vacas, cavalos, cabras, porcos, cães e codornas, assumindo a função de coterapeutas. A parte técnica do tratamento é assinada pela equipe humana, com psicólogas e psicopedagogas, e as ações acontecem em parceria com as prefeituras. A missão, explica Daniela, é combater a exclusão social de crianças e jovens vítimas de abuso, traumas e violência familiar, por meio de terapia assistida por animais.

“Nosso objetivo é impactar cada vez mais jovens e crianças, porque sem base socioemocional não adianta dar escola; eles não conseguem lidar. É muito trauma, muita violência, muito abuso para digerir. Hoje, um participante da Fundação Casa pediu para continuar no projeto durante o próximo ciclo e contou sua história: começou a usar droga aos seis anos de idade. A gente errou como humanidade. Precisa ter uma base, senão não adianta”, finaliza.

Fuente