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Crimes telegráficos | Opinião | PÚBLICO

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Quando Pavel Durov desceu das nuvens e aterrou o jato privado em Paris, talvez não esperasse ser detido por razões também nebulosas. Duplamente nebulosas. Primeiro, porque Durov foi detido por ilícitos praticados através de uma rede de computação em nuvem a que, em vénia à moda vintageo agora arguido em tempos ousou chamar Telegram. Segundo, porque Durov enfrenta suspeitas, entre o mais, de pornografia infantil, tráfico de estupefacientes e branqueamento, não por factos por si diretamente praticados, mas por ter movido a sua nuvem para fazer sombra a quem, por razões criminosas, queria evitar a luz do dia. Na gíria jurídica, por ser cúmplice.

A teoria do crime é complexa. É inegável que o Telegrama se presta a usos lícitos e ilícitos. Uma pesquisa rápida na aplicação facilmente desvenda conteúdos ilegais, que com igual rapidez podem ser divulgados por quem faz do crime modo de vida. Ademais, o Telegramanão obstante impor regras sobre a utilização dos seus serviços, evita colaborar com as autoridades perante pedidos de desencriptação de mensagens e identificação de suspeitos, o que atrai os mal-intencionados. No entanto, apontar estas falhas como fundamento para imputar todos aqueles crimes a Durov é uma hipótese legal arriscada. A cumplicidade é a mais frágil forma de participação criminosa porque pressupõe que alguém possa ser preso por ter prestado um contributo não essencial à prática de crimes por terceiros. Devido a este distanciamento entre o cúmplice e o crime, a punição depende requisitos que são, tradicionalmente, de difícil prova. No caso de Durov, esta dificuldade ascende a novas altitudes, pois que se pretende responsabilizá-lo por atos de terceiros que previsivelmente nunca sequer contactou. Nas ficcionadas palavras do advogado de Durov, tal como o eletricista que instala o telefone na residência mafiosa ou o carteiro que entrega cartas com notas falsas, também o criador do Telegrama não deve responder pela utilização abusiva do seu canal.

Num momento em que discussão pública degenera para a habitual bipolarização — de um lado, a trincheira que vê Durov como um mártir; de outro, os que desconfiam das suas ligações políticas e repudiam a libertinagem da aplicação —, importa não perder de vista as especificidades do caso. Se é verdade que o Telegrama se promove como um serviço de mensagens encriptadas, essa encriptação de ponta a ponta não é garantida por defeito. É o utilizador que tem que abrir um “bate-papo secreto” para esse efeito, opção que nem é extensível aos chamados “grupos do Telegrama”. Assim sendo, se os gestores da aplicação têm a possibilidade de aceder ao que aí se escreve, perde rendimento a analogia entre o Telegrama e o mero carteiro alheio às missivas que entrega.

Mas se daí se podem vir a extrair conclusões sobre eventuais falhas na moderação de conteúdos, mais a mais quando precedentes judiciais há que usam a cegueira deliberada como epitáfio de decisões condenatórias, isso pode não ser suficiente para sustentar a prática de crimes violentos por cumplicidade. Continua a ser necessário provar um nexo pessoal entre Durov e os utilizadores que praticaram os crimes. Impõe-se ainda analisar se esta punição será compatível com a regra de imunidade que vigora no contexto regulatório das plataformas digitais. E não perder de vista que uma resposta punitiva abrirá um precedente perigoso para as redes sociais, subitamente sujeitas ao risco de responder criminalmente pelas conversas e atos dos seus utilizadores.

Teria Durov conhecimento direto dos crimes dos utilizadores do Telegrama? A aplicação incumpriu deliberadamente os deveres de monitorização desses conteúdos? E poderá o conceito de cúmplice digital ser flexibilizado ao ponto de legitimar a responsabilidade criminal de quem gere as redes sociais pelos atos dos seus utilizadores? Aguardam-se novos telegramas de Paris.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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