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A praxe do assédio da praxe

Todos os anos, o mesmo ritual: a mesma violência psicológica, o mesmo sexismo, a mesma homofobia. O ano académico em Coimbra começou, e com ele vem a tradição da gritaria violenta e coerciva a que alguns chamam “integração”. Não é a exceção, é a regra. Há poucos dias, deparei-me, logo acima das Escadas Monumentais, com umas dezenas de nos túmulosvestidos de rigor a preto — em boa tradição estilo Gestapo — a berrar as suas “ordens” perante uma massa de “gado” pronto a ser abatido. O cenário assemelha-se a um pelotão do exército, bem organizado em colunas e linhas, onde os oficiais ladram como cães raivosos diante de uma massa de carne humana, pronta a ser obrigada a sair das trincheiras para a morte certa. O pior é que, por vezes, este cenário transforma-se em tragédia real. Recentemente passaram dez anos sobre as tragédias do Meco e de Bragamas tudo parece ter voltado ao mesmo. Será que são necessárias mais mortes? Ou, sem mortes, está tudo bem?

Estamos perante uma centena de estudantes recém-chegados. O cenário repete-se inúmeras vezes. Chegaram a uma cidade e a um curso desconhecido; não conhecem ninguém. Perante a solidão, a vulnerabilidade e a relativa ignorância, estes jovens são obrigados a práticas que vão muito além do assédio. Legalmente, as práticas da praxe poderiam ser enquadradas como tortura: incluem sistematicamente a auto-humilhação, a punição coletiva, a desumanização, a imobilização forçada e a tortura de stress postural.

Tudo isto acontece com a colaboração, conhecimento e consentimento de toda a autoridade: dos professores, das autoridades académicas, das autoridades políticas e das forças de segurança. Se eu — enquanto doutorado e funcionário da UC — sou arrogantemente intimidado pelos líderes praxistas para sair do lugar quando tento intervir neste espetáculo fascistóide em plena praça pública, imaginem a posição do caloiro.

Percebo por que razão a Reitoria da Universidade de Coimbra fecha os olhos perante este vale de lágrimas: a tradição praxista — de capa preta e fado machista — faz parte do património turístico. Ao longo dos anos, tornou-se um bem comercial que se traduz numa fonte de receita cada vez maior numa universidade que, cada vez mais, funciona como se fosse uma empresa privada. Mas será mesmo essa a maior responsabilidade de uma reitoria numa universidade pública? E onde está a responsabilidade dos professores que permitem que isto aconteça, daqueles que ainda incentivam os seus alunos a participar, que emprestam a sua aula à praxe porque acreditam que é bom para a “integração”?

O assédio é estrutural na organização; as vítimas contentam-se com a “diversão” de, um dia, serem elas as perpetradoras da violência hierárquica. Mas, ao contrário de outras formas de assédio, este assédio massivo não acontece em gabinetes, à porta fechada — acontece abertamente, em público, ostentado para toda a gente ver. Ao contrário do habitual, os seus perpetradores orgulham-se dos seus atos.

Pergunto-me para que servem as comissões de ética, os cursos sobre prevenção de assédio e igualdade de género, obrigatórios nas universidades. Não sou daqueles que defendem a punição severa dos perpetradores; não acho que seja necessário expulsar todos os praticantes de praxe da universidade, retirar-lhes os diplomas ou sequer tirar-lhes as responsabilidades nos núcleos de estudantes. Mas o mínimo que deve ser feito é desaconselhar a praxe, fazer prevenção, informar os estudantes e criar alternativas de integração. Como pai, preocupado com o futuro da minha filha, que um dia passará pelos corredores da universidade, agarro-me à pequena esperança representada por uma minoria de estudantes que, por iniciativa própria, continua a promover uma valiosa ação chamada Cria’ctividade. Esta iniciativa procura organizar a integração com base em valores de comunidade, pensamento crítico e igualdade social. Mas não deveria ser a própria universidade a promover esses valores?

Para além das questões sociais e éticas, é imperativo agir pela própria qualidade do ensino. Entristeceu-me ver que duas estudantes praxistas, licenciadas (!) em Psicologia, além de claramente não terem percebido nada da componente ética do seu curso, não faziam a mínima ideia de quem era Lacan. Para quem não é da área de Psicologia — eu também não sou — perdoa-se o desconhecimento, mas o professor francês Jacques Lacan foi um dos, senão “o”, psicanalistas mais influentes do século XX. Ou seja, perturba-me que estas estudantes tenham passado claramente muito mais tempo na praxe do que nas aulas.

Enfim, outra estudante defendeu que este espetáculo nada tinha a ver com fascismo, porque a praxe era “voluntária” e o fascismo não. Perante tamanha ignorância, fiquei na dúvida entre perguntar-lhe como o fascismo chegou ao poder em Itália e na Alemanha, ou simplesmente aconselhá-la a estudar o conceito de banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt.

O autor escreve segundo novo acordo ortográfico



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