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A marcha de normalização neofascista na Europa | Opinião

A marcha de normalização neofascista na Europa | Opinião

Quem é genuinamente democrata respirou de alívio ao receber os resultados da segunda volta das eleições francesas para a Assembleia Nacional. Principalmente pela conjuntural derrota política e eleitoral da União Nacional (UN), que ficou em terceiro lugar na corrida. No entanto, é necessário assinalar que o partido de Le Pen teve 37% dos votos e aumentou em 63% a sua bancada, passando de 89 para 142 deputados – evidentemente muito longe do previsto nas sondagens, que prediziam uma vitória da UN.

Fiel ao ofício de historiador, entendo ser essencial não perdermos de vista o porquê e quando é que esses movimentos reacionários “despertaram” para um novo impulso, mas sobretudo, a forma como se tem processado a normalizaçãonaturalização” e legitimação de tais projetos políticos. Esse “novo normal” ganha consistência social a partir das (segundas) vitórias de Orbán na Hungria, em 2010, e do Lei e Justiça (PiS) na Polónia, em 2015; bem como da conquista do governo central do Partido da Liberdade da Áustria, em 2017, e de Giorgia Meloni na Itália (2022) – o seu partido tem ligações diretas com o que restou do movimento fascista italiano. Ou, do recente governo formado nos Países Baixo com vários ministros do Partido pela Liberdade – de cariz neofascista. Em resumo, esses partidos conseguiram ascender à chefia dos governos pela via eleitoral.



Existem outros resultados eleitorais significativos, como a forte subida do Chega para 50 deputados na Assembleia da República (2024); o supracitado crescimento da UN de Le Pen e dos partidos de “extrema-direita” para o Parlamento Europeu – mesmo que tenham ficado muito aquém do que as sondagens apontavam. A Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido neonazi, parece se consolidar como a segunda força política na terra do velho Hegel.

Importa ressaltar que o crescimento e alargamento desses partidos/movimentos não são frutos do acaso ou um acidente, mas sim, consequência da crise estrutural do capitalismo e do regime político liberal. Em síntese, esses últimos resultados representam “só” mais um momento de normalização e integração desses projetos políticos reacionários e neofascistas na sociedade e nas instituições (nacionais e europeias).

O ponto que pretendo evidenciar é o papel que a comunicação social (CS) tem tido nesse processo de normalização e integração de movimentos e partidos reacionários e neofascistas no espaço público, como fossem mais uma organização politicamente legítima a defender interesses legítimos – mesmo que se baseiem em ideias nazifascista, racistas, colonialistas, chauvinistas e afins. Para isso recorrem a algumas táticas (intencionais ou não).

A mais usual tem sido classificar esse fenómeno ou as suas figuras políticas de “populistas”, como se fosse uma categoria autoexplicativa e definidora da natureza social e histórica de partidos como Chega, Vox, União Nacional, Irmãos d’Itália, etc. A categorização e utilização por parte da comunicação social (jornalistas, comentadores, analistas) do termo populista para movimentos e partidos neofascistas (ou de extrema-direita), no meu entendimento, acaba por funcionar como um legitimador fundamental das diversas políticas reacionárias e as suas variantes nacionais, visto que escamoteia para segundo plano o carácter antidemocrático, classicista, chauvinista, fascista e racista dessas organizações.

O ponto central é que estes partidos recorrem à ideia de “povo” (um abstrato no qual cabe qualquer coisa) de forma instrumental, enquanto uma estratégia política, que buscam se apresentarem (falsamente) como os defensores dos interesses “dos de baixo”, que ficaram desamparados, “deixados para atrás” e empobrecidos – mesmo que financiado por grandes grupos económicos. Isto é, utilizam uma eficiente tática de comunicação, a partir de necessidades e interesses reais e concretos daqueles que vivem do trabalho (na sua complexidade e heterogeneidade). Ao utilizarmos o “populismo” para categorizar qualquer ideia que se apresente contrária ao status quonão pode resultar no ocultamento da natureza política dessas organizações? (há estudos sobre o papel da academia no reforço dessa prática da CS).

Também identificamos um procedimento de limpeza da imagem de certas figuras políticas, no sentido de demonstrar que elas podem ser racistas, fascistas e etc., mas são humanas que “até” gostam de animais, vejam bem, têm uma coelha de estimação. O que estou a querer dizer: não existem escolhas editoriais aleatórias, são os editores-chefes que escolhem quantas vezes tal figura concede entrevista “em exclusivo” – o grande fetiche da CS.

Para quem acompanhou a comunicação social francesa nos últimos 20 dias teve a oportunidade de verificar o imenso esforço de normalização da UN e de Jordan Bardella. Todavia, a forma é um pouco diferente, mas bem conhecida da historiografia contemporânea: a “história dos dois demónios”; ou da filosofia: as falácias lógicas de falsa analogia ou “argumento” do espantalho. No caso concreto, teve uma campanha muito forte para “demonizar” o programa económico da Nova Frente Popular e Mélenchon, mas como bem disseram Cagé e Piketty no O guardiãoé uma agenda económica da antiga social-democracia europeia, não tem nada de radical ou de extremismo.

A realidade lusitana não é muito diferente, quantas vezes ouvimos dizer que seria “normal” o PSD formar governo com Chega, visto que o PS tinha realizado um acordo de incidência parlamentar com PCP, Bloco de Esquerda e os Verdes – porque esses partidos seriam de extrema-esquerda. Logo, os populistas/extremistas de esquerda e de direita são iguais. Esse tipo de prática na comunicação social é profundamente despolitizadora e normaliza do processo de fascistização no espaço público.

Por que não nomear esses movimentos/partidos de forma precisa? Tem-se medo de estigmatizá-los ao enunciarem que são reacionários ou neofascistas? Falarem “os portugueses são livres para votar”, não estão a fornecer uma “tinta” de democrático a partidos visivelmente antidemocráticos? Ou recorrer constantemente ao “populismo” não velam a raiz elitista e classicista desses partidos? Por que a esmagadora maioria da CS normalizou as alianças políticas de Ursula von der Leyen com a extrema-direita “boa” (atlantista)? O neofascismo mal só é aquele que age sem ambiguidades?

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