Nos próximos dias veremos muitas celebrações do 25 de Abril, mais encarniçadas perante a ascensão do projeto de extrema-direita em Portugal, mas ainda assim longínquas quer da revolta contra o fardo que arrastava o povo pelo chão até 1974, quer da profunda transformação alcançada nessa altura. Nas vésperas do cinquentenário, onze ativistas climáticos vão ser julgados no Campus de Justiça por se levantarem para parar a guerra contra a sociedade. O quê e como vamos celebrar?

“25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”, é a palavra de ordem mais arremessada ao autoritarismo de uma polícia hoje entrecruzada com a extrema-direita e à manifestação parlamentar da extrema-direita internacional. Seria inspirador se essa palavra fosse mais aspiração do que lembrança, mas em vários momentos é mais parte de uma cerimónia do que anseio coletivo de futuro. Nos 50 anos da revolução que derrubou a ditadura mais longa da Europa, o medo do futuro domina os que se reivindicam da tradição revolucionária. E por isso só ouvimos falar da defesa da Constituição de Abril, das promessas de Abril, das conquistas de Abril. Porque em 2024 imaginar querer e ter a coragem de se lançar a conquistar muito mais do que em 1974 é considerado coisa para meia dúzia de líricos, pá.

Nas vésperas do cinquentenário do 25 de Abril, onze ativistas climáticos serão julgados por ações em que foi denunciada a guerra levada a cabo por governos e empresas contra o conjunto da humanidade. A crise climática é um ato deliberado cujos efeitos são a morte de milhares de pessoas hoje e de centenas de milhões no futuro, levada a cabo pelas elites do sistema económico que hoje vive na pulsão de morte de acumular riqueza e poder contra a viabilidade da sociedade no futuro.

A revolução em Portugal foi feita em contra-ciclo histórico, arrancada violentamente a uma elite decrépita que matava uma geração inteira numa guerra para fingir que Portugal ainda era o que nunca tinha sido: elites que exploravam escravos e matérias primas dos territórios que saqueavam, enquanto contratavam fábulas de epopeias, quadros e estátuas por talentosos artistas que precisavam não morrer à fome. Enquanto os países europeus começavam a levar as primeiras punhaladas do neoliberalismo, Portugal construía a toda a velocidade o Estado Social para tentar curar as hemorragias sociais deixadas por 48 anos de um fascismo tão arcaico que teria estado bem no século XIX. Em poucos anos constituíram-se a saúde pública, a educação pública, nacionalizaram-se alguns sectores essenciais, mas pouco depois a história apanhou-nos. O Reaganismo e Tatcherismo chegariam uma década mais tarde por Cavaco Silva, que inverteu a redistribuição de riqueza e poder para cima, com privatizações e liberalizações, camufladas pelo influxo dos primeiros milhões vindos da União Europeia.

A noção romântica de que o 25 de Abril foi não-violento choca com informação essencial: dezenas de tanques, viaturas militares e soldados armados pelas ruas da cidade, dezenas de unidades militares sublevadas. Capturaram as figuras principais do regime e desmantelaram sob a mira de G-3 as principais ferramentas de poder do Estado Novo, a ditadura de Marcello Caetano. A força bruta à disposição dos militares revoltosos, um grande desequilíbrio momentâneo de forças e a decisão de avançar assumindo riscos funcionou de tal maneira que o derrame de grandes quantidades de sangue não foi sequer necessário. Nos poucos sítios onde não abundavam militares, como a sede da PIDE em Lisboa, o regime contra-atacou visando e matando os civis que se mobilizavam à porta. Mas foi a desobediência popular o factor essencial para transformar o que poderia ter sido apenas um bem executado golpe de estado numa revolução social e popular. Quem tinha passado quase uma vida inteira a obedecer a uma ditadura decidiu que bastava. O povo desobedeceu aos militares, não ficou em casa, tomou as ruas e empurrou a revolução para a frente, muito mais para a frente do que os militares do Movimento das Forças Armadas alguma vez tinham planeado.

O 25 de Abril foi uma revolução contra uma guerra. Foi uma revolução contra a barbárie e a selvajaria que matava pessoas de Portugal e que matava revolucionários independentistas em Angola, na Guiné e em Moçambique. Para manter essa barbárie, o regime fascista vindo dos anos 20 precisava de recorrer a todas as armas da repressão, mantendo na linha gerações inteiras. Usava um aparelho incessante de propaganda do regime, impondo valores racistas, eugénicos e conservadores para justificar o contínuo colonialismo, mesmo após o fim da escravatura e a exigência por parte do capitalismo global de mais mercados para explorar. Anos de guerra corroeram a capacidade narrativa e coerciva do aparelho fascista português e a ação do movimento dos capitães começou o que foi o golpe final. O futuro não estava mais escrito e o que aconteceu a seguir não era o plano dos militares nem das forças políticas que se reivindicavam da revolução. Acabada a guerra, o povo lançou-se para conseguir muito mais do que apenas acabar com uma guerra e com um regime que existia para impedi-lo de ser livre. No ano e meio seguinte, na típica confusão que qualquer revolução implica, o povo português deu um salto de 60 anos de História, avançando mais rápido que nunca rumo a um futuro melhor. Calhou cair na altura errada para melhorar a vida dos povos, já que a elite capitalista global iria abrir de seguida o maior assalto da sua história, que nos transportou a um mundo ainda mais desigual e nas primeiras etapas do colapso ambiental.

A mobilização social contra a guerra hoje produz-se num contexto tão ou mais adverso do que em 1974. A ditadura está dentro das cabeças. A passividade e o respeito, a obediência, o cinismo e a hipocrisia são inculcados incessantemente na cabeças, e o principal argumento, mesmo dos “herdeiros” da revolução, é que não há condições para avançar, só para ficar à defesa. Quem diria em 1974 que as havia?

A herança da revolução não pode ser remoer sobre o que foi e queixarmo-nos do que é. Uma revolução não é, nunca pode ser, sobre outra coisa que não o futuro, pelo que há uma contradição em “celebrar” passivamente uma revolução do passado. Em Abril de 1974 tudo era futuro, as portas do novo estavam abertas, enquanto as âncoras do passado eram levantadas. No entusiasmo e na ânsia de avançar, muitas destas âncoras não foram recolhidas.

50 anos depois, nas vésperas do aniversário da revolução, os Onze de Abril, ativistas climáticos detidos por ações nos últimos meses para travar uma guerra declarada por governos e empresas a toda a sociedade, que levam à catástrofe climática, vão ser julgados. É um sinal político importante, não sobre o passado, mas sobre o futuro. Como nos vamos recordar de 2024 em 2074? Como o momento em que de novo se fez do impossível realidade? Tanta casa vazia por ocupar e tanta refinaria por fechar, n’é filho? Celebrar passivamente a revolução, ou como cantava o Zé Mário, sair “à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas”, é contribuir para que a revolução não faça parte do futuro.

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