Menos de quinze dias após a tomada de posse do actual Governo e, portanto, bem mais cedo do que é habitual, estalou a primeira polémica séria, a respeito das propostas de diminuição do IRS. Larga parte da comunicação social e dos comentadores e a plenitude dos partidos de oposição uniram-se no protesto, recorrendo a qualificativos que foram desde os mais contidos – ambiguidade -, até aos mais verrinosos – fraude, embuste, engano.

Na base das críticas a circunstância de o Governo e, em particular, o Primeiro-Ministro, terem deixado passar a ideia de que em causa estaria uma redução de 1.500 milhões de euros, adicional relativamente aos cerca de 1.300 milhões que o Orçamento do Estado para 2024 já estabelecera.

Nada melhor para esvaziar a polémica (isto, claro, se os responsáveis por ela estiverem disponíveis para isso) do que a análise serena dos factos. Vamos, pois, a eles.

Em 14 de Agosto de 2023, no discurso da festa do Pontal, Luís Montenegro avançou com um conjunto de propostas em matéria fiscal, invocando a sua necessidade, tendo em conta a carga fiscal asfixiante sobre as pessoas e as famílias, e a sua possibilidade, atento o crescimento exponencial das receitas cobradas “à boleia” da inflação.

Entre tais propostas, destacavam-se: a redução do IRS, ainda para 2023, no valor de 1.200 milhões de euros, através do decréscimo de 10% das taxas marginais nos oito primeiros escalões (mas com especial incidência entre o 2.º e o 6.º); o estabelecimento de uma taxa máxima de IRS de 15% para os jovens até aos 35 anos; um benefício, também em sede de IRS, para rendimentos atribuídos a título de aumento da produtividade.

Devidamente densificadas e formalizadas, as propostas foram discutidas e votadas no Parlamento em 20 de Setembro de 2023. Todas vieram a ser reprovadas pelo PS (nalguns casos acompanhado pelos seus parceiros da esquerda).

Em 24 de Janeiro de 2024, foi tornado público o Programa Económico da AD. E, aí, no que tem que ver com o tema no centro da polémica, pode ler-se, na página 24: “Redução do IRS até ao 8.º escalão, através da redução de taxas marginais entre 0,5 e até 3 pontos percentuais face a 2023com maior enfoque na classe média” (sublinhado meu).

Adicionalmente, em que linha com o que antes tinha sido anunciado, previa-se: “Isenção de contribuições e impostos sobre prémios de desempenho até ao limite equivalente a um vencimento mensal; Adoção do IRS Jovem de forma duradoura e estrutural, que implica uma redução de 2/3 nas taxas atualmente aplicáveis, com uma taxa máxima de apenas 15%, aplicadas a todos os jovens até aos 35 anos, com exceção do último escalão de rendimentos” (página 24).

Já em matéria de IRC, avançava-se “com a redução gradual de 2 pontos percentuais por ano até aos 15% no final da Legislatura” (página 25).

Em 9 de Fevereiro de 2024, foi apresentado o programa eleitoral da AD, que incorporou o texto do programa económico e, consequentemente, nos mesmíssimos termos, quanto acima se transcreveu.

Mas mais: na página 97, e a propósito da delimitação do cenário orçamental, consta uma tabela relativa às receitas, onde se pode ler: “Isenção de contribuições e IRS sobre prémios de desempenho e redução das taxas marginais de IRS até ao 8º escalão entre 0,5 e 3 p.p. face a 2023” (sublinhado meu).

Em 10 de Abril de 2024, o Governo submeteu o seu programa à Assembleia da República. E, no que tange aos pontos em causa, pode ler-se, na página 34: “Redução do IRS para os contribuintes até ao 8º escalão, através da redução de taxas marginais entre 0,5 e 3 pontos percentuais face a 2023com enfoque na classe média; Adoção do IRS jovem de forma duradora e estrutural, com uma redução de dois terços nas taxas de 2023, tendo uma taxa máxima de 15% aplicada a todos os jovens até aos 35 anos, com exceção do último escalão de rendimentos; Isenção de contribuição e impostos os prémios de desempenho até ao limite equivalente de um vencimento mensal” (sublinhado meu).

Quando os políticos são, tantas vezes, acusados (e, infelizmente, com razão), de faltar à sua palavra, maior transparência e coerência seriam, creio, impossíveis – não em uma, em duas, em três, mas em quatro ocasiões, os compromissos assumidos foram exactamente os mesmos.

Porém, como se tudo aquilo que se escreveu não fosse, por si só, suficiente, no início da discussão do programa o Primeiro-Ministro reafirmou que o Governo “introduziu uma descida das taxas de IRS sobre os rendimentos até ao oitavo escalão”, sendo que “esta medida vai perfazer uma diminuição global de cerca de 1500 milhões de euros nos impostos do trabalho dos portugueses face ao ano passado” (sublinhado meu).

Além disso, em resposta a pergunta que lhe foi colocada então, Luís Montenegro esclareceu, ainda, que “a diferença face àquilo que já tinha sido decisão do Governo anterior é que, para o Governo anterior, o desagravamento fiscal em sede de IRS devia terminar no 5º escalão”. E qualquer pessoa minimamente atenta compreenderá que alargar o desagravamento fiscal aos 6.º, 7.º e 8.º escalões jamais poderia representar um valor acrescido de 1.500 milhões de euros…

Em nenhum momento, pois, foi dito ou escrito que a diminuição do IRS seria de mais 1.500 milhões relativamente ao que já constava do Orçamento do Estado para 2024. O que, de resto, seria manifestamente contraditório com os números contidos no cenário orçamental.

Com efeito, no que toca à isenção de contribuições e IRS sobre prémios de desempenho e redução das taxas marginais de IRS até ao 8º escalão entre 0,5 e 3 p.p. face a 2023, previu-se nele, para o horizonte temporal de 2024-206, um custo das medidas na ordem dos 2.000 milhões de euros. Ora, se a proposta redução de IRS fosse adicional ao inscrito no Orçamento de 2024, o valor global inscrito para esses três anos teria de ser substancialmente maior.

A prova evidente de que o alcance real da medida era facilmente apreensível encontra-se, de resto, na reacção do líder da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, às declarações do Ministro das Finanças de 12 de Fevereiro, quando afirmou que desde Agosto de 2023 que o seu partido vinha a apontar que o objetivo do PSD em matérias fiscais era muito pouco, sublinhando, também, que aquilo que o programa de Governo prometeu, e que já tinha sido prometido na campanha eleitoral, não constitui um choque fiscal, mas um retoque fiscal.

Não houve, portanto, má-fé, mistificação, embuste, engano, fraude ou outra coisa qualquer do género por parte do Governo. Antes, e sem falhas, sempre a reiteração dos mesmos compromissos.

Por isso, o comportamento daqueles que criticam o Executivo nesta matéria faz-me lembrar a frase popular do “fazer o mal e a caramunha” – fazer mal a alguém e queixar-se, como se fosse vítima, sem se revelar como autor do mal.

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