Quando, em abril de 1974, soaram pelo mundo os ecos de golpe militar em Portugal, não ficou claro de imediato de que tendência política seria. A América Latina levava mais de dez anos de interferências militares na vida política que tinham contribuído para depor pela força governos democraticamente eleitos e colocar no poder regimes autoritários de direita.

O caso mais recente estava ainda fresco na memória. Sete meses antes, a 11 de setembro de 1973, um golpe de Estado sangrento no Chile, liderado pelo chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet, em articulação com os Estados Unidos, derrubara o Presidente socialista Salvador Allende.

Viviam-se os anos da Guerra Fria e muitos países alinhavam-se em função de áreas de influência subservientes às duas superpotências — Estados Unidos e União Soviética. Se o Chile caía definitivamente para o hemisfério norte-americano, quo vadis Portugal?

Marcelo Rebelo de Sousa na exposição sobre o MFA e a Revolução dos Cravos, em Lisboa, com o capitão de Abril Vasco Lourenço, a comissária das comemorações dos 50 anos, Maria Inácia Rezola, e os ministros da Defesa, Nuno Melo, e da Presidência, António Leitão Amaro

Pedro Cordeiro

50 anos do 25 de Abril

“À época, na América Latina, os militares implantavam ditaduras de direita, autoritárias e repressivas. Mas em Portugal, acontecia um golpe de militares a favor da democratização do país. Foi uma grande surpresa para toda a gente”, recorda ao Expresso o historiador britânico Kenneth Maxwell, que se notabilizou na área dos estudos latino-americanos e que, em 1974, escreveu sobre a Revolução dos Cravos numa revista norte-americana.

“Era difícil para as pessoas, no estrangeiro, compreenderem que, em Portugal, jovens militares queriam criar uma democracia, porque tinham a visão das ditaduras de direita na América Latina. Tentei explicar isso mesmo nos artigos que escrevi.”

Fotografia tirada no próprio dia da revolução, em Lisboa

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Quando se deu o 25 de Abril, Maxwell saíra de Portugal três dias antes. As suas investigações académicas sobre a relação entre Portugal e o Brasil, então no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, levavam-no a visitar Portugal de quando em vez.

Conhecia bem a realidade político-social portuguesa e, por essa razão, quando, a 22 de fevereiro de 1974, foi posto à venda “Portugal e o Futuro” do general António de Spínola, ficou incrédulo. “Como era possível que um livro daquele tipo fosse publicado?”, interroga-se. Esta obra, que rapidamente se tornou um êxito de vendas, constituía o reconhecimento por parte de uma figura proeminente do regime de que a guerra colonial nunca poderia ser ganha.

Da universidade para o jornalismo

“Entrei em contacto com o Bob Silvers, que era editor da ‘The New York Review of Books’, e disse-lhe que achava que alguma coisa podia acontecer em Portugal”, recorda Maxwell, hoje com 83 anos e reformado de uma carreira de docente na Universidade de Harvard. “O Bob Silvers era bom editor, tinha uma apreciação muito boa da situação europeia, já tinha morado em França alguns anos, e aceitou a proposta que fiz de ir a Portugal. Deu-me credenciais de jornalista e mandou-me para Lisboa”.

O britânico andou por Portugal nas semanas anteriores à revolução. No artigo que publicaria sobre o 25 de Abril naquela revista quinzenal norte-americana, a 13 de junho de 1974, escreveu:

“Grande parte da província parecia ter sido visitada pela peste bubónica. Havia povoações inteiras moribundas, estradas desertas e campos abandonados. Vi, nos muros em ruínas de casas fechadas, escritos simples que denunciavam a polícia e o elevado nível dos preços; em muitos cruzamentos encontravam-se guardas republicanos com carabinas e bicicletas — de pouca utilidade contra um exército, mas bastante eficientes contra velhas mulheres em vagarosos carros de bois”.

Cartão de leitor da Biblioteca Nacional de Lisboa, que Kenneth Maxwell começou a frequentar em 1964

ARQUIVO PESSOAL DE KENNETH MAXWELL

Maxwell tinha vindo a Portugal pela primeira vez dez anos antes do 25 de Abril. Queria conhecer o país e aprender a língua. Dispunha de uma curta almofada financeira graças a artigos que foi escrevendo para um jornal regional inglês, o “Western Morning News”, que lhe pagava 5 libras e 5 xelins por peça.

Ficou mais desafogado após, na sequência de, numa entrevista com o diretor do serviço internacional da Fundação Gulbenkian, Guilherme de Ayala Monteiro, ter conseguido apoio para a sua estada e para as aulas particulares de português. “Agora Lisboa está cheia de estrangeiros, mas em 1964 eu era um dos poucos estrangeiros na cidade. Era muito difícil contactar com portugueses. A PIDE andava pelos cafés e as pessoas tinham medo de falar. Ninguém falava comigo”, recorda.

Estudante inglês procura estudante português

“Eu queria aprender a falar português. Então pus um anúncio no ‘Diário de Notícias’ a dizer que era um estudante inglês e que queria entrar em contacto com estudantes portugueses. Era uma forma de entrar em contacto com pessoas que não conhecia. À distância, é difícil compreender como Portugal era na época de Salazar. Mas este foi o único modo para contactar com jovens portugueses.”

“Recebi umas 30 respostas e entrei em contacto com três ou quatro pessoas. No fim, fiquei com dois bons amigos. Ainda somos amigos depois de todos esses anos.” Um deles chamava-se Fernando, era de Matosinhos e filho de pescador. Ainda mantêm o contacto. “Em 1974, ele era miliciano em Lisboa”, recorda o britânico. “Depois do golpe, levou-me ao quartel-general da PIDE onde os militares estavam a examinar os documentos. Ainda pude ver alguns…”

Anúncio posto por Kenneth Maxwell no “Diário de Notícias”

ARQUIVO PESSOAL DE KENNETH MAXWELL

O editor da “The New York Review of Books” entendeu titular a reportagem de Maxwell “A Neat Revolution” (Uma Revolução Asseada). Para essa perceção terão contribuído passagens do texto que descrevem “uma revolução sem sangue”, a “forma magistral” como Marcello Caetano e António Spínola desempenharam o seu papel nas últimas horas críticas do Estado Novo ou “a transferência pacífica de autoridade”.

Na mesma linha, num artigo intitulado “Um cavalheiresco golpe de Estado em Portugal”, a revista norte-americana “Newsweek” escreveu, na edição de 6 de maio:

“Os portugueses sempre tiveram uma maneira muito sua de fazer as coisas. Mesmo aquele sangrento espetáculo ibérico, a tourada, adquire em Portugal uma característica especial, cavalheiresca, pois o touro nunca é morto. Na semana passada, um grupo estreitamente coordenado de oficiais do Exército aplicou essa tradição civilizada a um ato muitas vezes violento: um golpe militar. Mal se disparou um tiro, e apenas um punhado de vidas se perderam quando os rebeldes atacaram e — em treze horas — arrebataram o ‘controlo’ do país das mais do regime caduco e ultraconservador que manteve Portugal num sistema feudal. No entanto, embora tenha sido calmo e rápido, o golpe assinalou uma nova era na História.”

Militares que querem um poder civil

Nos Estados Unidos, a curiosidade em torno da revolução portuguesa levou órgãos de informação a procurarem Maxwell, acabado de chegar de Portugal, para que explicasse o que estava a acontecer no último império colonial europeu. “Dei algumas entrevistas à televisão pública e disse que tinha sido um golpe de esquerda. Ficaram muito surpreendidos, porque achavam que tinha sido de direita.”

A excecionalidade do 25 de Abril passava por os militares defenderem a consagração das liberdades fundamentais, a realização de eleições por sufrágio universal direto e secreto, a amnistia imediata dos prisioneiros políticos, a constituição de um governo civil e o reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar era política e não militar. Tudo isto dificultava a tarefa académica, mas também das elites políticas mundiais, de enquadrar o caso português nas grelhas de análise existentes.

Capa da revista “Time” de 6 de maio de 1974

Na cobertura que fez ao 25 de Abril, também a norte-americana “Time” colocou as 243 páginas do livro de Spínola no coração da revolução portuguesa. No artigo “A Book, a Song and Then a Revolution” (“Um livro, uma canção e depois uma revolução”), publicado a 6 de maio de 1974, a obra foi considerada “dinamite política”, “um catalisador da revolução” e “o dobre a finados de um trágico fracasso nacional”.

A capa da revista era uma ilustração de Spínola. O texto, além de dedicar parágrafos ao perfil do “soldado-herói de monóculo”, descrevia o ambiente popular no exterior do Quartel do Carmo.

“Lá fora, a disposição da multidão era mais de festa que de fúria. Os espectadores passaram a maior parte do dia observando curiosamente os tanques e oferecendo cigarros e sanduíches aos soldados. Quando Spínola chegou ao quartel com toda a aparência de uma figura tipo De Gaulle que não conspirava para tomar o poder, mas meramente acedera ao apelo dos conspiradores, milhares de pessoas à sua volta aplaudiram freneticamente.”

No Largo do Carmo, uma mulher distribui comida aos militares

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A leitura dos acontecimentos em Portugal pelos observadores internacionais pode ter sido dificultada por o golpe ter sido liderado por capitães e oficiais subalternos, e não por altas patentes, que, em meio dia, derrubaram uma ditadura que durava há quase cinco décadas. Isso contrariava as práticas mais comuns de intervenção militar nos processos políticos.

“O golpe foi organizado entre os jovens oficiais do exército. Ninguém sabia quem eles eram”, comenta Maxwell. “A maioria do exército estava em África, apenas uma minoria estava em Lisboa. Esses oficiais tinham feito algumas comissões em África, tinham pouco contacto com civis e muito menos com partidos políticos clandestinos. O Partido Comunista estava muito envolvido no Alentejo, mas Álvaro Cunhal estava fora do país. Mário Soares também. Foram totalmente apanhados de surpresa.”

Informadores perseguidos como ratos

Nas páginas da revista francesa “L’Express”, num artigo intitulado “L’explosion portugaise” (A explosão portuguesa), André Pautard refere-se a “uma estranha ambiguidade a que cobre de incerteza esta revolução em que se misturam episódios imitados da libertação de Paris [1944], da independência da Argélia [1962] ou da Sorbonne de Maio de 1968”.

Na edição de 6 de maio, o jornalista escreve:

“Uma semana após o golpe de Estado, Lisboa sacia-se de cortejos, de discursos, de canções. Os seus habitantes cobrem as estátuas, os corpetes, as lapelas e as metralhadoras dos soldados com flores vermelhas. Os antigos informadores da polícia política são perseguidos como ratos. Os fuzileiros navais acompanham, infatigáveis, as manifestações de rua. E, por toda a parte, se ouve, lengalenga ingénua e, ao mesmo tempo, ameaçadora, este slogan que crianças, civis e militares gritam em uníssono: ‘O povo unido jamais será vencido’. Potemkine nas margens do Tejo”.

Kenneth Maxwell participou, no início de abril, num congresso sobre os 50 anos do 25 de Abril, na Universidade de São Paulo (Brasil)

ARQUIVO PESSOAL DE KENNETH MAXWELL

O historiador britânico recorda como o 25 de Abril apanhou de surpresa também os diplomatas estrangeiros. “O embaixador americano [Stuart Nash Scott] não estava em Lisboa quando a revolução aconteceu. Estava nos Açores e não voltou para Portugal, foi para Harvard [para presidir à reunião anual da Associação da Faculdade de Direito, onde estudou]. Não tinha conhecimento da importância daquilo que estava a acontecer no país onde ele era embaixador.” Só regressaria a Portugal a 29 de abril.

Igualmente, o chefe da CIA em Londres, Cord Meyer, admitiria ter sido surpreendido pelos acontecimentos. Chegou a dizer que o golpe dos capitães “apanhou os Estados Unidos na hora do almoço”.

Na mira dos fãs das revoluções

Em 1974, Kenneth Maxwell voltaria a Portugal no último trimestre do ano. Regressaria em março-abril de 1975 para encontrar um país diferente, comparativamente aos dias da revolução. Portugal transformara-se num palco de confrontos políticos e tornara-se um assunto interessante para a imprensa internacional.

“Se em 1974 havia poucos jornalistas estrangeiros em Portugal, depois do 25 de Abril começaram a chegar. Em 1975, Portugal tornou-se um foco dos revolution groupies que começaram a chegar para ver a revolução em curso.

Mural do Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses (PCTP), junto à Assembleia da República, em Lisboa

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Personalidades como o filósofo francês Jean-Paul Sartre e o escritor colombiano Gabriel García Márquez vieram a Portugal ver e sentir a resolução de perto. A agência turística Nouvelles Frontières organizou viagens de turismo cultural ao país, tornado um laboratório de análise política e social para quem queria observar in loco uma revolução de esquerda na Europa.

Houve muitas pessoas que chegaram com uma ideia romântica da revolução. No Alentejo, as tomadas de posição dos trabalhadores rurais faziam lembrar as revoluções do século XIX, como a de 1848 em França. Era mais essa a visão do que de uma revolução russa [1917] ou francesa [1789]. Foi uma revolução liberal, nesse sentido”, diz o historiador. “No início, foi difícil as pessoas compreenderem…”

Nascido a 3 de fevereiro de 1941, na pequena cidade inglesa de Wellington, Kenneth Maxwell participou, no início deste mês, num congresso sobre o 50.º aniversário da Revolução dos Cravos, na Universidade de São Paulo, no Brasil. Aos 83 anos, continua a ser convidado para partilhar memórias de um acontecimento único. “Para mim, a revolução em si foi um momento de grande esperança”, conclui. “Foi um dos momentos mais importantes da história europeia daquelas décadas.

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