Na semana passada, as 14 comissões permanentes da Assembleia da República tomaram posse. Menos de dois meses depois, o novo projeto da associação “Os 230” espera que os deputados-cidadãos selecionados iniciem funções idênticas. Tratam-se de Comissões de Cidadãos que querem recriar as comissões permanentes, mas em vez de políticos, terão 230 cidadãos apartidários a discutir propostas em áreas como Educação e Ciência, Saúde ou Ambiente e Energia. O objetivo é chegar a medidas “concretas”, “realizáveis” e que podem “fazer a diferença” para, depois, entregá-las ao Governo e aos partidos. Mais do que conseguir que as medidas sejam aceites, o projeto espera criar a “semente” da participação cívica.

“Queremos juntar os 230 deputados-cidadãos de duas em duas semanas, via online. Depois ter uma reunião presencial em outubro/novembro para votarmos em plenário as propostas preparadas pelas diferentes comissões. As propostas aprovadas vão ser entregues aos deputados e ao Governo”, explicou ao Expresso Francisco Araújo, fundador do projeto “Os 230”. Apesar de ainda não ter entrado em contacto com o executivo de Luís Montenegro, o jovem vai pedir reuniões “nos próximos tempos” e acredita que as propostas vão ser “devidamente apreciadas”. “O facto de serem propostas independentes e vindas da sociedade civil atribui-lhes outro valor”defendeu.

Além do Governo, o projeto tem em mira o contacto com deputados que façam parte das comissões permanentes ou que já tenham feito. “Já tivemos deputados a contactarem-nos para dizer que estão interessados em participar na iniciativa. Vamos tentar criar uma sinergia entre democracia participativa e representativa. Ou seja, levar deputados a assistirem a algumas Comissões de Cidadãos e partilharem experiências. E levar os deputados-cidadãos também a assistirem a algumas das comissões na AR”, avançou Francisco Araújo. Por agora, o fundador não quis adiantar os nomes dos deputados que estarão envolvidos.

Até agora, a iniciativa conta com mais de 1.000 candidaturas – vão estar abertas até dia 30 de abril –, mas só 230 serão selecionadas pelos presidentes e vice-presidentes de cada comissão. “Temos candidaturas muito diversas, tanto há malta de 20 anos como de 60. De vários pontos do país e muitos a viver fora”disse ao Expresso Maria Luísa Moreira, que será presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas. “Muitas das candidaturas vêm de pessoas com muita experiência, muito ativismo social já feito, uma participação muito ativa nas juntas de freguesia, nos bairros. Temos pessoas muito competentes”, acrescentou Catarina Barreiros, presidente da Comissão de Ambiente e Energia.

“O objetivo não é ser uma tertúlia, mas uma comissão de trabalho”

Para tentar ao máximo espelhar a sociedade civil, cada comissão deverá ser composta por uma massa “heterogénea” de pessoas de diferentes géneros, idades, localidades ou experiências profissionais. Contudo, tal como os deputados no Parlamento, também aqui os candidatos selecionados vão ter de chegar a consensos sobre as melhores propostas a levar a votos na sessão final. “O objetivo não é ser uma tertúlia, mas uma comissão de trabalho. E perceberem que é difícil chegar a um consenso, que há frustrações, mas também é isso que é a política real”lembrou Francisco Araújo.

A capacidade de gerar consenso é um dos maiores desafios dos presidentes das Comissões. “Podem aparecer pessoas a favor da solução de dois Estados [no Médio Oriente] ou anti-Nato, que não é o que defendo. Isso também faz parte do exercício democrático”, disse Maria Luísa Moreira, consultora na área da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Ao mesmo tempo, é também uma forma de mostrar parte do trabalho dos deputados que, muitas vezes, tem pouca visibilidade mediática. “Vai ser uma boa oportunidade para as pessoas perceberem como é que se faz política e que tipo de concessões é que, às vezes, é preciso fazer”considerou Catarina Barreiros. A jovem fundadora do projeto Do Zero preside à segunda comissão que mais recebeu candidaturas, só abaixo de Educação e Ciência.

Tratando-se de um projeto de voluntariado, não é esperado que os deputados-cidadãos “dediquem oito horas por dia a este tema”. “Espero, sim, que levem o projeto com seriedade, espírito crítico e abertura para ouvir os outros. Espero haver mais respeito do que aquele que, muitas vezes, se vê entre os 230 deputados”, acrescentou Catarina Barreiros.

Apesar de se tratar de uma primeira edição “experimental”, Francisco Araújo espera vir a criar quatro Comissões de Cidadãos por sessão legislativa, sempre ao mesmo tempo que as comissões da AR, mas nem por isso com os mesmos temas. “Queremos que [o projeto] dure 10, 20, 30 anos”. Mais do que levar medidas pensadas por pessoas para dentro da AR, esta iniciativa quer “despertar o sentimento cívico” e contribuir para que daqui se criem outras iniciativas da sociedade civil. “Gostava que saíssemos desta primeira edição com mais esperança naquilo que são os processos democráticos e a participação cívica”partilhou a presidente da futura Comissão de Ambiente e Energia.

“Há uma descrença, uma quebra de confiança entre a sociedade civil e o exercício político que é preciso desfazer para se manter uma democracia saudável. Perante a polarização atual, há cada vez menos pessoas moderadas dispostas a lutar pela democracia. Por isso, apelo às candidaturas. Gostava muito que as pessoas se sentissem empoderadas e parte da mudança”, acrescentou Maria Luísa Moreira.

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