UM DESPERTAR MADRUGADOR E INCRÉDULO

A acção decorre no centro de Lisboa. Jornalista estagiário, tinha 20 anos e trabalhava na delegação do matutino “O Comércio do Porto”, no 1.º andar de um prédio pombalino que fazia (e ainda faz) esquina com as ruas da Emenda e da Horta Seca.

O telefone tocou aí pelas seis da manhã. Meu pai, também jornalista, mas com longa carreira e fundadas convicções democráticas (acompanhara Humberto Delgado), foi ao escritório atender e trouxe-me a notícia ao quarto: sabia-se de movimentações militares, seguramente de oposição ao regime, e a indicação era para seguirmos para “o jornal”.

Gravei na memória que esse 25 de Abril amanhecia nublado e que a névoa adensava o tom dramático, feito de ansiedade e inquietação, que os primeiros sinais de uma sublevação militar deixavam perceber.

Fomos dos primeiros a chegar ao Camões e recebi indicação do chefe Alves dos Santos para dar uma volta pela cidade e tomar o pulso à situação. Tendo ao lado o camarada Barata Salgueiro, seguimos no meu carro, Rua do Alecrim abaixo, em direcção à Praça do Comércio.

Circulámos pela Ribeira das Naus e encontrámos a coluna da Escola Prática de Cavalaria, sob o comando de Salgueiro Maia (só depois o saberíamos), posicionada junto aos ministérios. As tropas distribuíam-se pelo Terreiro ou protegiam-se junto às colunas, debaixo das arcadas.

Não pudemos parar. Recebemos ordem para circular e prosseguimos na intenção de encontrar mais pontos de intervenção militar, ignorando que as ameaças viriam da fragata Gago Coutinho, fundeada no Tejo, e dos tanques de Cavalaria 7, fiel ao regime, que se posicionariam na Rua do Arsenal.

Tomámos notas, sem imaginar que ali se jogava o êxito ou o fracasso do golpe, e seguimos para o Aeroporto. Pelo caminho, escutando os comunicados na rádio, comentámos que o movimento parecia consistente e musculado, ao contrário do levantamento ensaiado pelo Regimento de Infantaria das Caldas, que malograra a 16 de Março.

Seria desta o derrube do regime? Mal podia acreditar, face à subserviência das altas patentes, que ficariam conhecidas como a “Brigada do Reumático”, e ao discurso decepcionante do Presidente do Conselho, que escutei pela rádio durante uma aula, interrompida pela jovem Assistente na expectativa de laivos de liberdade. Em vão. Marcello Caetano rejeitou a via que António de Spínola abria em “Portugal e o Futuro” e trancou as portas.

HAVERÁ SANGUE

No Aeroporto, não vislumbrámos tropas – o controlo militar da Portela não era percetível. Excluindo a ocupação do Terreiro do Paço e artérias circundantes, àquela hora não se observavam ainda grandes movimentações nem havia populares nas ruas. Chegaria a altura…

A verdade é que, na véspera e durante a madrugada de 25, a sublevação militar tinha alcançado os seus objetivos estratégicos – ocupação e controlo de regimentos, bases aéreas, quartel-general do Governo Militar de Lisboa, antenas de retransmissão, Rádio Clube Português, RTP, Rádio Marconi, Banco de Portugal, defesa de grandes pontes e tomada de assalto de ministérios.

Marcello Caetano e os seus próximos haviam encontrado refúgio no Quartel do Carmo, mas contavam poucas espingardas a seu lado: GNR, Lanceiros 2, PIDE-DGS, Legião Portuguesa e Cavalaria 7, e esta também em vias de se render aos revoltosos.

Voltámos à Delegação no Camões e começámos a enviar informação para a sede no Porto.

Nova saída, agora a pé, e com o colega sénior ao lado. Seguimos para o Chiado e tivemos curiosidade em espreitar a sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso. Caminhámos rua fora até depararmos com dois “pides”, vigilantes junto ao edifício da polícia política, cada qual de seu lado da rua. Não trocámos palavra, não os fitámos, e prosseguimos até dobrar a esquina com a Vítor Cordon.

Só então comentámos que ambos seguravam pistolas-metralhadoras FBP, meio dissimuladas sob os casacos. Era natural que o fizessem. Sentiam-se ameaçados e só seriam neutralizados à noite, quando Cavalaria 3 e Fuzileiros os cercaram e negociaram a rendição de Silva Pais. Mas a cena que presenciámos, eu e o Barata Salgueiro, foi o prenúncio do que viria a suceder.

Primeiro, aí por volta do meio-dia (o sol raiava alto) e já com milhares de populares na Baixa, quando uma manifestação rumou à António Maria Cardoso. No instante, frente à “Brasileira”, adivinhei o pior. Pouco tardou até ouvir disparos, que ecoaram forte, e ver os manifestantes fugir de volta.

Foram tiros de intimidação, mas à noite consumaram uma tragédia, já que a PIDE/DGS disparou indiscriminadamente sobre os populares que cercaram a sede, causando quatro mortes e dezenas de feridos. Um dos raros episódios do “25 de Abril” em que sangue foi derramado.

UM CAOS CALMO

Não sei precisar quantos percursos fiz entre o Camões e o Carmo. Foi um vaivém desde que a coluna de Salgueiro Maia se moveu para o Carmo, deixando (as lagartas dos blindados) pegadas vincadas no asfalto.

A situação evoluía a cada instante e, ao voltar “ao jornal”, ora relatava ora recebia nova informação. Numa dessas ocasiões, dou com uma força da GNR (ainda fiel ao regime) posicionada na Rua da Horta Seca, mesmo debaixo das janelas da Delegação. Ambiente tenso no 1.º andar, que se agravou quando os militares abriram fogo. O meu colega José Grais, cabeça grisalha, foi o mais lesto a enfiar-se debaixo da secretária e… a suscitar a risota de todos, quando o tiroteio cessou.

Voltei à rua esgueirando-me pelo Loreto, com destino ao Carmo, onde a situação ainda era problemática. As viaturas e as tropas de Santarém ocupavam o Largo, e tinham recebido apoio dos companheiros de Vendas Novas, que lhes protegiam a retaguarda na Trindade. Tropas da GNR, ainda que pouco significativas, mantinham-se por perto. E os populares a assistir de bancada.

A certo passo, volto a ouvir disparos de armas automáticas e refugio-me num prédio da Travessa do Carmo. Dezenas de homens, civis e militares, ali se aglomeraram por instantes. Reparo num deles: um recruta de Santarém, G3 nas mãos, tremia como varas verdes, a ponto de um veterano exclamar – “Oh homem, tenha lá cuidado! Tem bala na câmara!”. Retira-lhe, então, a arma e coloca-a em segurança. O moço não teria mais que três meses de instrução, como muitos dos demais milicianos.

As peripécias dentro e fora do Quartel do Carmo já fazem parte da História de Portugal, volvidos que são 50 anos, e têm sido abundantemente retratadas. Nada tenho a acrescentar à narrativa.

Apenas a memória de um cenário épico e caótico. Mas um caos calmo, próprio dos (ditos) brandos costumes, em que civis e militares (alguns trajando à civil) se confundiam; mirones se atropelavam a cada rajada de auto-metralhadora sobre a fachada do Quartel; e viaturas com políticos e militares, chamados ao local como mediadores, a custo abriam alas. Foi o caso do General Spínola.

Sucediam-se as entradas e saídas do Quartel, a ansiedade aumentava, e a multidão engrossava e cercava os portões. Francisco Sousa Tavares trepou e, mesmo mal equilibrado sobre a guarita do sentinela, de megafone em punho, tentou convencer os populares a guardarem distância para os militares se movimentarem. Sem sucesso.

A tudo assisti horas a fio e, sem o saber, ali construí uma amizade, com Carlos Beato, oficial adjunto de Salgueiro Maia, que só décadas depois o acaso veio a estreitar.

Já entardecia quando Marcello Caetano, Rui Patrício, Moreira Baptista e outras figuras do regime entraram na Chaimite “Bula”, que a custo desceu a Calçada rumo ao Posto de Comando do Movimento, na Pontinha.

De regresso “ao jornal”, diante da máquina de escrever, tentei desfiar aquele novelo de acontecimentos, emoções e sentimentos, e tornar coerente o meu primeiro encontro com a liberdade de me exprimir e de noticiar, que a Polícia, a PIDE e a Censura me negavam.

Deposto o regime, instituído um novo poder legitimado e proclamada a Junta de Salvação Nacional, através da emissão da RTP, fechámos a Delegação e regressei a casa, atordoado pelas imagens de um dia irrepetível.

Na manhã seguinte, não consegui levantar-me, febril que estava com um episódio de gripe. Reteve-me de cama, mágoa minha, e impediu-me de testemunhar a libertação dos presos políticos da Cadeia de Caxias.

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