Um Congresso palestiniano, realizado esta semana na capital alemã e organizado maioritariamente por ativistas judeus, foi cercado por milhares de polícias, que o interromperam e detiveram participantes. Yanis Varoufakis, economista, antigo ministro grego e orador convidado, foi proibido de visitar a Alemanha e de fazer qualquer tipo de atividade política, incluindo por zoom. Nada mais nada menos. Porquê? Porque se opõe ao genocídio que o governo israelita está a cometer em Gaza e pretendia fazer este discursoque assim foi censurado.

O mesmo aconteceu com o cirurgião britânico-palestiniano Ghassan Abu Sittah, reitor da Universidade de Glasgow, impedido de entrar no país pelas autoridades de fronteira alemãs. Também a filósofa Nancy Fraser, académica norte-americana de origem judia e renome internacional, teve o seu convite para dar aulas na Universidade de Colónia, no próximo mês de maio, cancelado abruptamente pelo reitor daquela Universidade, por ter assinado uma carta pública pela liberdade da Palestina. É este o ar dos tempos na Alemanha: agressões em cascata à liberdade política e académica, um governo dito “progressista” que utiliza a polícia e a censura para impedir cidadãos, muitos dos quais judeus, de criticarem o governo extremista de Israel e de denunciarem um genocídio.

Este movimento não é inédito. Na imprensa alemã, não houve hesitações em atacar, nos últimos meses, muitas outras intelectuais de esquerda, como Naomi Klein (também judia) por ter qualificado a ação do governo israelita como “genocida” ou Judith Butler (também judia) pelas suas teses sobre o apartheid promovido por Israel e pelas suas teorias pós-coloniais. Esses ataques e censuras fazem-se sempre recorrendo ao mesmo libelo: quem critica o governo de Israel é cúmplice do “antisemitismo”.

Não há dúvidas de que o antisemitismo é uma forma de xenofobia, com velhas raízes históricas. Na Alemanha, o empenho no combate ao antisemitismo tem um peso histórico particular, pelo compromisso assumido pelo estado alemão de expiar as responsabilidades históricas pelo Holocausto. Mas é profundamente errado e contraditório que, sob o pretexto da recordação do Holocausto, se tome o Estado de Israel como um substituto monolítico de todos os judeus. Essa deturpação é em si mesmo uma forma de preconceito, que opera através do mesmo mecanismo de qualquer xenofobia. Ignora abertamente todos os judeus que historicamente se opuseram ao projeto sionista (Einstein, Arendt, Chomsky, só para citar alguns), tal como os israelitas que se opõem à ação colonial do Estado israelita, à violência atroz e ao genocídio em Gaza.

Na realidade, a equiparação de todos os judeus ao governo israelita constitui uma forma de antisemitismo. A luta contra a colonização ilegal da Palestina ou contra o genocídio em Gaza nada tem de antisemita. Pelo contrário: é uma luta contra a eliminação de uma população por pertencer a um determinado grupo. Se há alguma lição a retirar do terrível passado nazi da Alemanha é que o abismo moral está sempre na definição política de um “povo eleito” e na categorização de um determinado povo ou nação inteira como desumanos ou indignos, que é o que há muito faz o Estado israelita.

A memória do Holocausto devia ser, por isso mesmo, um antídoto contra qualquer genocídio, nunca uma desculpa, nunca um álibi, nunca um pretexto para não querer ver os crimes cometidos por Israel, nunca um altar para a justitificação do sacrifício de milhares de vidas palestinianas inocentes.

Invocando a luta contra o antissemitismo, o Estado alemão (incluindo as principais correntes políticas da direita à esquerda) abraçou o nacionalismo israelita por procuração, que inclui a estigmatização e a supressão de qualquer expressão de identidade palestiniana e de solidariedade com a Palestina, e até a ameaça de deportação em função da perversa aplicação do rótulo de “antisemita”.

Onde estão então, neste contexto de censura e repressão, as vozes que brandem com tanta exaltação o amor à liberdade de expressão e o rancor contra o cancelamento? Onde está a indignação contra o bloqueio dos jornalistas que querem cobrir a guerra e a ocupação? Onde a revolta contra a verdadeira “não-cobertura” do que está a acontecer na Palestina? Onde os clamores pela liberdade de expressão política nas “democracias liberais”?

Ou afinal a censura é boa quando trata de calar intelectuais anti-sionistas, sejam judeus ou não? Se forem estas vozes, já podem ser violentamente impedidas de falar?

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