A Comissão Europeia renunciou à sua responsabilidade mais premente: defender a democracia e o Estado de Direito. Em vez de confrontar os Estados-membros que violam as regras, a instituição responsável por defender os interesses da União Europeia (UE) tenta mantê-los do seu lado. Esta abordagem assume-se como um erro crasso. Sem uma âncora europeia forte, que mantenha os 27 membros alinhados e comprometidos com as regras que subscreveram, as coisas podem ficar fora de controlo muito rapidamente.

Ao reflectirmos sobre os 50 anos da democracia em Portugal, temos de pensar também na democracia europeia. Porquê? Porque já não existe uma distinção clara entre as duas! Na UE não habitam apenas 27 democracias nacionais. Temos também um espaço democrático europeu abrangente. Pensemos no seguinte: quando os portugueses votam nas eleições nacionais, determinam também a escolha do primeiro-ministro que integra o Conselho Europeu, em Bruxelas. Influenciam igualmente a escolha dos ministros que elaboram as leis no Conselho da UE. Quando Portugal vota nas eleições europeias, agendadas em solo nacional para o dia 9 de Junho, vai naturalmente determinar quem tem assento no Parlamento Europeu e que Comissão Europeia é eleita. Este é, por isso, um momento eleitoral decisivo, que determinará o rumo de Portugal na Europa, e a sua liderança a nível global.

É seguro dizer que a democracia europeia não está de boa saúde. Os problemas na Hungria, na Polónia e em vários outros países da UE causaram danos reais nos valores europeus comuns. Ilustram ainda um problema mais abrangente: as regras e leis da UE não estão a ser aplicadas como deveriam. Mas por que é que nos devemos preocupar? Desde logo porque o que aconteceu na Hungria e na Polónia afecta toda a Europa. Os eventos que tiveram lugar em Malta, na Grécia e na Eslováquia, onde foram assassinados jornalistas, afectam todos os europeus. Os culpados não são uns quaisquer atores estrangeiros, são políticos europeus que impactam a democracia europeia e as leis que influenciam a vida de todos nós.

À medida que a democracia e o Estado de Direito diminuem, a corrupção ganha terreno. São as pequenas empresas e os cidadãos comuns que sofrem, ao passo que os ricos e bem relacionados parecem continuar, não só imunes, como cada vez mais fortes.

A UE deveria ser um garante dos nossos valores, especialmente quando estes estão a ser violados pelos governos nacionais. Em vez disso, a Comissão Europeia opta por apaziguar os governos nacionais! Será estratégico? Para cumprir que propósito?

Esta escolha não acontece por acaso. Tem sido uma política notória da Comissão Europeia fazer cumprir cada vez menos as regras estabelecidas. Dois cientistas da Universidade americana Rutgers provaram estatisticamente que, a partir da Comissão de Durão Barroso, há menos processos por infracção quando os países da UE violam as regras. A tendência tem vindo a diminuir desde há vinte anos, atingindo o mínimo com a actual Comissão de Von der Leyen.

A presidente da Comissão Europeia tem evitado de forma sistemática ir contra os Estados-membros, mesmo nos casos em que assim se justifica. Para ela, os Estados-membros são parceiros que precisa de manter do seu lado, por muito nacionalista que seja o comportamento deles. O seu cargo depende das eleições europeias! O que nos traz de volta à votação do próximo dia 9 de Junho. Votaremos para reforçar a UE como um bastião da democracia? Ou permitiremos que o actual retrocesso democrático continue?

Von der Leyen apresentou-se para liderar a Comissão Europeia por mais um mandato. A presidente é elogiada por dar à Europa um rosto reconhecível, por tomar a iniciativa e por ser um importante actor político. A realidade é que a sua hiperactividade política teve algumas desvantagens reais. Do Leyen valoriza o sigilo em vez da transparência, como quando fez um acordo secreto no valor de milhares de milhões de euros para a compra de vacinas à farmacêutica Pfizer. Valoriza as acções unilaterais em detrimento da deliberação democrática, ignorando rotineiramente o Parlamento. Sob o seu comando, milhares de pessoas morreram no Mediterrâneo – em busca de uma vida melhor.

Em Gaza, cometeu um erro grosseiro porque estava sedenta de holofotes. Ursula provou estar disposta a sacrificar grandes programas estratégicos da sua própria Comissão Europeia, como o Pacto Ecológico Europeu (Acordo Verde), já que isso a beneficiaria pessoalmente. E no que diz respeito à guerra na Ucrânia, subornou a Hungria no valor de 10 mil milhões de euros para obter o voto de Orbán para o alargamento. A chantagem é recompensada, não punida. A maior parte do seu legado é pautado pela renúncia da independência da Comissão Europeia sem a qual a Comissão não pode proteger os valores europeus. Não pode fazer frente aos Estados-membros, que quebram as regras apenas em benefício de si próprios. Sem a Comissão Europeia como aplicadora independente, a UE fica à deriva da chamada “lei da selva”. Nessa situação, os países mais pequenos perdem e todos nós somos prejudicados.

Os eleitores portugueses exercem, neste contexto, um papel essencial. Poucos países na Europa compreendem tão bem o poder da democracia (e o quão frágil esta pode ser) como Portugal. A Revolução dos Cravos não é apenas um dia importante para Portugal, mas para toda a Europa. A transição para a democracia significou que Portugal poderia eventualmente juntar-se à comunidade europeia das democracias liberais. Significou também que a Europa absorveria três novos membros que eram antigas ditaduras: Portugal juntamente com a Espanha e a Grécia. Em suma, a Europa mudou Portugal para melhor, mas Portugal também mudou a UE de formas muito relevantes. O legado do 25 de Abril levou à integração europeia para além da mera cooperação económica. O que acabou por se tornar na UE que conhecemos hoje (e que está sob ameaça) foi uma união política assente em valores fundamentais, como a democracia e o Estado de Direito. A Europa precisa de debater e caminhar numa direção federalista para garantir a sua relevância e os seus valores na defesa da paz, na competitividade global do seu tecido económico e tecnológico, bem como na mobilização do resto do planeta para mitigar as alterações climáticas e evitar o ponto de não retorno do sistema terrestre.

Não podemos permitir que esta UE se degrade ao ponto de deixar de ser a nossa melhor esperança para um futuro democrático. A democracia não é um dado adquirido. Exige trabalho e exige que resistamos a indivíduos poderosos que não respeitam os valores democráticos. Os acontecimentos do 25 de Abril estão na memória viva de muitos portugueses. Não é apenas motivo de orgulho, mas também uma lição importante para o resto da Europa.

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